Direção: John Hillcoat
Roteiro: Joe Penhall
Elenco principal: Homem (Vigo Mortensen), Garoto (Kodi Smit-Mcphee), Esposa (Charlize Theron), Velho (Robert Durvall), Ladrão (Michael K. Williams), Pai de família (Guy Pearce).
Batalha intrépida e perseverante pela vida numa jornada árdua de auto superação e esperança no porvir, “A Estrada” descortina um futuro distópico e pós-apocalíptico em que as condições desoladoras de sobrevivência no planeta submetem os homens à dilemas e escolhas limítrofes no âmbito da experiência individual e coletiva. Ainda que tenhamos exemplos interessantes e diversos de produções cinematográficas e séries cujo escopo se traduz nas tentativas de adaptação de agrupamentos humanos frente à situações sociais caóticas e ameaças catastróficas praticamente irreversíveis (seja pelas consequências diretas ou não das próprias ações humanas), “A Estrada” também merece atenção justamente por articular com perspicácia seus elementos estilísticos compondo um drama profundo e sombrio de sobrevivência experimentado por pai e filho, indivíduos que diante de todos os sofrimentos e percalços seguem firmes cultivando uma esperança alvissareira a partir do aprendizado recíproco, da solidariedade e de uma crença genuína na civilização. O roteiro, uma adaptação do livro homônimo de Cormac McCarthy lançado em 2006, não se interessa em explicar ou dar maiores informações acerca da gênese do que teria levado à bancarrota os recursos e a vida na Terra, lançando o mundo numa penumbra inexorável (o que sabemos é que uma espécie de cataclismo engendrou diversos outros desastres naturais). Não obstante, o texto de Joe Penhall se volta para o aprofundamento dos laços afetivos, para a retratação das penúrias físicas e psicológicas do “Homem” e do “Garoto” em busca de comida, abrigo e proteção, além da insistente convicção idealista da dupla em “manter o fogo vivo” dentro de si, metáfora direta do lema de não se dobrar diante das privações essenciais, da selvageria, do egoísmo e da violência. A viagem ao Sul realizada pelo Homem (Vigo Mortensen) e pelo Garoto (Kodi Smit-McPhee) é entrecortada por flashs ou vislumbres da vida familiar pré-apocalíptica - caracterizada por uma iluminação mais natural e colorida da fotografia no descontraído ambiente doméstico – pelo enfrentamento de situações tensas e perigosas – cautela e instinto para fugir de milícias canibais - e ademais, pelo constante teste moral e humano (até que ponto uma realidade miserável, cruel e hostil pode transformar pessoas em monstros insensíveis e predadores frios?).
A direção além de apostar nas interações emotivas e na química dramática entre Mortensen e Mcphee (comunicada na fisicalidade dos gestos, expressões, trejeitos de caminhar, olhares e diálogos intensos), ancora-se na construção de uma atmosfera infernal, angustiante e penitente ressaltada aqui pelos tons lúgubres e dessaturados da fotografía, pela amplitude dos enquadramentos abertos e das panorâmicas que apequenam os protagonistas e os fazem transitar como “insetos” na imensidão de tralhas e destroços de um mundo convertido num ferro velho colossal. A cenografia decadentista dos escombros, das carcaças de automóveis, da natureza envenenada, da poluição acachapante e das intensas tempestades de fuligem circunscrevem a jornada extenuante de pai e filho pelos caminhos onde a parca vida persiste sob constante ameaça de extinção, da mesma forma que o aspecto miserável dos andarilhos esqueléticos e decrépitos com seus trapos sujos e botinas de papelão reforçam essa imagem de um fim iminente. À medida que a trama progride, o espectador tende a se indagar como seria possível aguentar sobreviver daquela forma, sem um lar, comida, água, o mínimo de segurança, enfim sufocado pela falta de garantia em encontrar um possível alento ou um destino menos cruel, tamanha a insistência das desgraças e martírios escancarados em tela. A “Esposa” (Charlize Theron) corrobora esta nossa compreensível angústia e desesperança quando opta pelo alheamento e o suicídio, numa despedida triste, difícil e dolorosa da família. Ao personagem de Vigo Mortensen não resta outra opção a não ser seguir em frente com seu filho, mesmo muitas vezes “assombrado” pelos fantasmas da impotência e da incredulidade que se descortina ao seu redor, impelindo-o com frequência a levar em consideração um plano b compreensível e nefasto de acabar com tudo. “A Estrada” faz o publico refletir acerca do martírio de uma vida sem subterfúgios materiais, humanos e espirituais, sobre a possibilidade real e legítima de escolher a morte como saída quando se está mergulhado no próprio inferno. No entanto, em se tratando do “Homem” sobressai o instinto vital e uma força interna inexplicável concentrada numa religiosidade projetada no amparo, na delicadeza do cuidado e no amor paterno sublime que mistifica a realidade e sacraliza o garotinho "Deus Menino", canalizando forças para superar as adversidades e a própria doença, chamando a atenção para o tema da importância da preservação do sentimento de inocência da infância e da transmissão de valores e preceitos civilizatórios em face de um mundo cada vez mais propenso ao ódio, ao individualismo egoísta, a barbárie e a relativização do mal. Por fim, Hillcoat consegue encontrar um meio termo entre o pessimismo recorrente da situação e a esperança firme dos protagonistas, equilibrando momentos árduos e difíceis com algum relaxamento e vislumbre promissor, não permitindo que a narrativa sucumba ao obscurantismo completo, mantendo-a sóbria e condutiva. Destaque para alguns atores de renome que dão o ar da graça no filme, mesmo que discretamente como é o caso do experiente Robert Durvall na pelo do taciturno “Velho”, de Michael K. Williams como o ladrão solitário, além de Guy Pearce que interpreta o perseguidor/viajante com sua família. “A Estrada” consegue suscitar angústia e tensão ao mesmo tempo em que congrega a esperança e nos conecta com o que resta de luz e bondade no mundo por meio da personalidade e da conduta do “Homem” e do “Garoto”, oferecendo-nos no final das contas uma experiência alentadora.
Por: Ábine Fernando Silva
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