Direção: Tim Burton
Roteiro: John August
Elenco principal: Johnny Depp (Willy Wonka), Freddie Highmore (Charlie Bucket), David Kelly (Vovô Joe), Deep Roy (Oompa-Loompas), Helena Bonham Carter (Sra. Bucket), Noah Taylor (Sr. Bucket), Christopher Lee (Dr. Wilbur Wonka), Philip Wiegratz (Augustus Gloop), Julia Winter (Veruca Salt), AnnaSophia Robb (Violet Beauregarde), Jordan Fry (Mike Teavee).
Remake do clássico “A Fantástica Fábrica de Chocolate, 1971, Mel Stuart”a versão de Tim Burton, muito mais focada no livro homônimo de Roald Dahl, toma caminhos diversos do original com toda sua opulência estética visual, efeitos especiais que possibilitam maximizar a fantasia e, sobretudo, com um enredo que toma liberdades narrativas abrangentes, tanto no que tange a contextos, personagens e temas veiculados. A estilística de Burton ecoa por todos os elementos que estruturam a trama, imprimindo sua marca desde o design de produção sombrio/irreverente, a fotografia realista e poética, até a predileção a protagonistas “desajustados” no mundo, numa direção de ritmo prazeroso, versátil que dosa com engenho o humor, drama social, aventura e porque não o “terror”? É desta forma que embarcamos na história do excêntrico e antissocial Willy Wonka (Johnny Depp) e do “garoto mais sortudo do mundo”, Charlie Bucket (Freddie Highmore), ambos figuras diametralmente opostas, tanto no que se refere ao caráter, personalidade, valores, quanto obviamente a condição socioeconômica. O maior, o mais original e criativo fabricante de chocolates e doces do mundo, exilado do convívio social por sete anos, trancafiado em sua colossal fábrica fechada ao interesse público (Wonka se cansou das constantes investidas de seus concorrentes que infiltravam espiões em suas linhas de produção para roubar seus preciosos segredos) resolve promover uma excursão inesquecível no interior de seus vastos domínios de guloseimas, prometendo ao final do percurso um prêmio secreto para aquele que superasse as insuspeitas adversidades dispostas sorrateiramente ao longo do trajeto. Tendo em vista planos mirabolantes, o magnata do chocolate decide contemplar com o passeio pela fábrica àqueles privilegiados que encontrassem os cinco famigerados bilhetes dourados, estrategicamente escondidos dentro de algumas barras de chocolate Wonka, distribuídos e comercializados ao redor do mundo. Sendo assim, o glutão Augustus Gloop (Philip Wiegratz) em Düsseldorf, a mimada aristocrata Veruca Salt (Julia Winter) em Buckinghamshire, a competitiva e atrevida Violet Beauregarde (AnnaSophia Robb) em Atlanta e o insolente sabichão viciado em videogamesMike Teavee (Jordan Fry) acabam compondo a lista dos pequenos visitantes da portentosa fábrica de chocolate (juntamente com um acompanhante da família, pai ou mãe), lista esta, que se encerra com o emocionante e justo lance do destino que permite ao pobre, mas virtuoso Charlie Bucket encontrar inesperadamente o último bilhete dourado, realizando assim o maior sonho de sua vida.
O roteiro de John August aproveita o melhor do enredo do clássico de 1971, mantendo certos elementos previsíveis, incluindo outros novos como a introdução de um narrador carismático, a infância de Wonka, sua paixão por doces e o rompimento de laços afetivos com o pai, o Dr. Wilbur Wonka (Christopher Lee) que o proíbe de consumir e deliciar-se com o que mais lhe dá prazer na vida. Há a abordagem sobre a origem dos Oompa-Loompas (Deep Roy) e o acordo que os fizeram viver e trabalhar na fábrica de chocolate, o convencimento sutil e assertivo do grupo visitante da fábrica acerca da veracidade dos eventos metafísicos ou fantásticos experenciados, além da introdução de contextos que de certa forma explicam a pobreza que vitima a família do humilde protagonista (desemprego da pai por conta da automação ou a demissão do vovô Joe em decorrência da desconfiança de Willy Wonka). Soma-se a isto a roupagem moderna, sofisticada que reestrutura a história, com efeitos especiais que dão mais vigor aos acidentes/emboscadas com as crianças, aos espetáculos musicais coloridos e inventivos dos Oompa-Loompas, à metalinguagem que homenageia oportunamente de forma cômica os clássicos “2001, Uma Odisséia no Espaço, 1968, Stanley Kubrick” e “Psicose, 1960, Alfred Hitchcock”, além da mensagem idealista, emotiva que promove a família como bem supremo imprescindível ou mecanismo fundamental, estruturante da moral e das virtudes da personalidade (Wonka e Charlie acabam formando uma mesma família). A direção de Tim Burton explora o melhor da cenografia, do disign de produção e dos personagens, construindo uma atmosfera sombria, lúgubre, de fantasia tragicômica, numa decupagem versátil de enquadramentos e ângulos de câmera que envolve, diverte e cativa. A ambientação impecável que reproduz uma Londres da segunda metade do século XIX, com habitações operárias simplórias, escuras, atmosfera fumacenta, clima gélido desconcertante, reforçada pela fotografia em tonalidades frias (azul e cinza), ressaltam um lugar marcado pela decadência econômica e social. A casa dos Bucket é um retrato da penúria e da agonia da cidade, com sua estética torta (remetendo aos cenários do Expressionismo Alemão), sua estrutura em decomposição, além da carência gritante de qualquer objeto ou elemento que exprima otimismo, esperança (é tudo muito velho, decadente ou insuficiente). Por outro lado, o ambiente interno da fábrica de chocolate é opulento, colorido, mágico, aparentemente acolhedor e convidativo.
A mensagem de “A Fantástica Fábrica de Chocolate” possui um forte conteúdo moralizante à medida que promove um viés punitivo rigoroso para as crianças insensatas, egoístas e presunçosas, poupando e enaltecendo o comportamento simples, humilde, fraterno e generoso do doce Charlie. A figura de Willy Wonka, interpretado por Johnny Depp como um sujeito infantilizado (a la Michael Jackson), antissocial, cheio de gestos e trejeitos avessos à empatia (tanto com os adultos quanto com as crianças), transforma sua fábrica numa espécie de auto-armadilha (já que os jovens acabam punidos por seus próprios excessos e vícios) e mesmo a dimensão previsível que nos ampara desde o início (sabemos que o humilde protagonista e seu avô irão se safar em detrimento das outras crianças), não compromete o espetáculo cômico, criativo e cheio de elementos fantasiosos, surreais, cujos Oompa-Loompas ditam o ritmo, protagonizando performances musicais marcantes e irreverentes. Freddie Highmore que vive o bom e humilde Charlie Bucket, com seu olhar e carisma terno, sensível, transmite fragilidade, pureza, conseguindo atingir a firmeza e a convicção necessárias nas cenas de maior intensidade dramática. Cabe mencionar as alusões macabras que o filme esconde sutilmente como a provável relação de trabalho escravo entre o gênio excêntrico do chocolate e seus pequenos e simpáticos trabalhadores (eles moram e trabalham na fábrica em troca de cacau) ou mesmo, a própria possibilidade dos felizardos convidados de Wonka não saírem vivos da misteriosa excursão (nesta versão, as crianças e seus pais aparecem ao final deixando a fábrica e trazendo consigo a marca de seus castigos). No fim das contas, o apelo sentimental que coloca a instituição familiar como base, fundamento do caráter e da personalidade, sendo, portanto, a coisa mais preciosa da vida monopoliza o espírito do enredo, fazendo com que o próprio Wonka se contradiga (o personagem não conseguia nem pronunciar “pais”, tamanho trauma) e reconheça os motivos de sua insatisfação pessoal e tristeza (aqui o virtuoso Charlie o ajuda a reconhecer isto, estimulando-o a reatar seus laços afetivos com o senhor Wilbur Wonka). A versão de Burton de “A Fantástica Fábrica de Chocolate” carrega o fôlego necessário para permanecer sóbria à passagem do tempo, seja por sua inconfundível e admirável marca autoral, seja pela escolha acertada de percursos narrativos atraentes ou mesmo por seu valor dramático impactante e comovente.
Por: Ábine Fernando Silva