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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

A Hora e a Vez de Augusto Matraga (2011)

Atualizado: 19 de out.

Direção: Vinícius Coimbra

Roteiro: Manuela Dias, Vinicius Coimbra

Elenco principal: João Miguel, Vanessa Gerbelli, Irandhir Santos, Chico Anysio, José Wilker, Ivan de Almeida, Teca Pereira, José Dumont.

João Miguel é Augusto Matraga no filme de Vinícius de Coimbra

Adaptação do conto homônimo de João Guimarães Rosa, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” de Vinícius de Coimbra impressiona pela afinidade narrativa com o texto literário do escritor mineiro, tamanha pertinência temática e sinergia de tom, tanto no que diz respeito à fidedignidade na construção dos personagens e suas caracterizações linguísticas, quanto no que concerne à reprodução sensível das peripécias e do universo truculento, selvagem e destemido da jagunçada, tipo social identificado à concepção cultural de brasilidade e elemento fundamental da mitologia Roseana. O enredo do filme acompanha a trajetória intrépida do pistoleiro Augusto Matraga (João Miguel), sujeito de índole bruta, valente e que espalha o terror sobre o pacato vilarejo de Murici, não obedecendo a limites, não respeitando mulher alheia, chefiando um bando armado que lhe segue sob o signo do medo. Entre emboscadas e ameaças constantes, o famigerado protagonista, imerso numa rotina mundana e cheia de violências, à medida que resolve mandar a mulher Dionóra (Vanessa Gerbelli) e a filha para outro lugar, acaba atocaiado, espancado e humilhado pelos seus próprios comparsas jagunços a mando do coronel Major Consilva (Chico Anysio) que há tempos remoía um ódio de vingança devido aos tradicionais e recorrentes excessos de vilania de Matraga na região. Antes de ser executado pelos facínoras, o homem em frangalhos se lança num precipício, convencendo a todos do lugar acerca de sua morte certa. Após ser resgatado e praticamente adotado por um casal de caboclos, Quitéria (Teca Pereira) e Serapião (Ivan de Almeida) que vivem numa gruta, o protagonista por milagre sobrevive decidido a aposentar as armas, trilhar um caminho de retidão e devoção religiosa e enterrar de vez o passado infame e violento. É desta forma que Augusto Matraga, redimido espiritualmente e moralmente, imerso na simplicidade e na bondade perseverante da mansidão ao ser agraciado com uma segunda chance de vida, experimenta uma existência pacata e de labuta, numa paz indescritível até que o matreiro destino o impele a cruzar os caminhos da quadrilha dos bravos guerreiros encabeçada pelo famoso jagunço Joãozinho Bem Bem (José Wilker), empurrando o renovado homem para uma brutalidade assassina, todavia travestida de justiça divina. O roteiro de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” intensamente articulado com o conto de Guimarães Rosa transporta para as telas de forma reverenciosa o espírito intrépido, rude e hostil do personagem vivido por João Miguel, sujeito valentão que submete tudo e todos aos seus desmandos, extravagâncias e arbitrariedades, sendo punido pelo “ferro” que tanto feriu, ganhando por um acaso de sorte ou divino (como acredita o homem) a oportunidade de começar de novo. O pacifismo humilde que toma conta da narrativa no segundo ato, de fato não convence o expectador, inclusive aquele que desconhece o enredo do célebre conto da literatura nacional, já que Augusto Matraga forjara quase toda sua existência no traquejo das armas, na imposição impiedosa da força e da violência, adquirindo um prazer sociopata que dificilmente estaria extinto de uma vez por todas para o mundo. Há de fato um clima de maldade adormecida e esconjurada que de repente vem à tona quando o protagonista conhece e afeiçoa-se como “parente” ao temível Joãozinho Bem Bem e a partir daí, o roteiro destila ambiguidades, gerando expectativa e tensão acerca do dilema do jagunço que tem nas veias um impulso de morte, a destreza com as armas e uma vontade nata de guerrear. Vale ressaltar dois momentos bastante simbólicos da trama que ilustram a manifestação de dois sujeitos distintos, sendo o primeiro quando o protagonista sacrifica um boi com um punhal extravasando toda sua maldade incontrolável e um segundo quando o novo Matraga salva um cavalo atolado num lago provando sua compaixão e piedade voluntárias. O plot twist magistralmente construído por Vinícius Coimbra encontra o “time” narrativo preciso ao colocar frente a frente às duas naturezas imponentes de chefia ou os “dois manos velhos” num duelo final épico e apoteótico. A transformação moral de Matraga embora encontre na paz e na devoção religiosa sua razão de ser, compreende o uso da violência ou sua justificação para o cumprimento de uma justiça mais nobre que não pode se confundir com a admiração, o comprometimento afetivo e da honra em relação à liderança da figura tão querida que se torna então seu inimigo mortal. Os dois personagens talhados na valentia guerreira e nos desmandos da bala constituem por outro lado uma curiosa atração repulsiva, explicada, sobretudo, pela nova dimensão humana e espiritual alcançada pelo protagonista.

José Wilker é Joãozinho Bem Bem, o "improvável" antagonista de Augusto Matraga

Como o próprio título da história sugere, Augusto Matraga encontra sua “hora” e sua “vez” numa batalha voluptuosa contra Joãozinho Bem Bem que mais se identifica com uma dança da morte, um sentimento de satisfação catártica e de entrega ao deixar-se sucumbir nas mãos de um oponente de mesma valia. Claro que tal fenômeno é recíproco, por mais que evidencie duas concepções de justiça totalmente opostas. A direção de Vinícius de Coimbra possui o esmero de construir um universo alinhado à proposta do enredo, com muitos planos abertos e fotografias panorâmicas que captam a vastidão de uma natureza inóspita, bruta e selvagem que cerceia a vida comunitária e que está, todavia enraizada nas relações sociais, na forma como os coronéis e seus braços armados submetem pela força e pelo medo os mais fracos. A mise-en-scene do filme explora a violência vibrante das ações, com uma câmera trêmula e enérgica, da mesma forma que relaciona a natureza rude dos espaços com uma precária presença de civilização, evidenciando tudo como muito austero, comedido e hostil, as relações entre os personagens, a comunicação bruta, o design de produção minimalista e sóbrio dos ambientes internos (inclusive de figuras socialmente poderosas). O diretor alcança com eficácia no primeiro ato um tom narrativo sério, tenso e carregado de uma tragicidade anunciada, uma vez que traduz com muita verdade a personalidade expansiva e as ações destemidas de um “anti-herói” cujo expectador pode não experimentar a empatia necessária a princípio. Nos atos seguintes a identificação se consolida pela transformação íntima do personagem, muito embora, a atmosfera narrativa, ainda fomente a possibilidade da índole violenta de Matraga emergir como a lava de um vulcão que de repente desperta. O ritmo do filme aprazível, jamais esmorece, nem mesmo quando a história se torna mais parcimoniosa, represando seu ímpeto para o extravaso do desfecho, entrevendo algum deslize no tom no que toca à trilha sonora que não se encaixa em algumas situações dramáticas importantes. Certamente a interpretação impecável de João Miguel, cheio de uma presença ameaçadora, com um sotaque sertanejo pungente e uma desenvoltura espontânea para representar um jagunço implacável contribuem para o impacto formidável da trama, sem contar a naturalidade cênica do ator em equalizar a personalidade, o comportamento, os gestos e olhares após a dura “travessia”, para usar uma expressão de Rosa, pela experiência de quase morte. O talento dramático do elenco de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” elevam a qualidade do filme, tamanho comprometimento com o espírito do roteiro e a percepção aguçada e corporificada de tipos sociais tradicionais da realidade histórica brasileira. Destaque para José Wilker na pele do audacioso e cerebral Joãozinho Bem Bem, para José Dumont como o piedoso padre Ezequiel (embora tenha pouquíssimo tempo de tela), para Irandhir Santos como o humilde e leal Quim, e, sobretudo, para Chico Anysio, o coadjuvante mais ilustre do filme e que encarna o vingativo Major Consilva, protagonizando uma das cenas mais emblemáticas e representativas do enredo no que se refere à simbologia dos coronéis. “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” de Vinícius de Coimbra é a prova viva da possibilidade de adaptações cinematográficas sinceras, reverenciosas e bem sucedidas dos textos literários clássicos brasileiros.


Por: Ábine Fernando Silva

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