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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

A Livraria (2017)

Direção: Isabel Coixet

Roteiro: Isabel Coixet

Elenco principal: Emily Mortimer, Bill Nighy, Patricia Clarkson, Honor Kneafsey, James Lance, Hunter Tremayne, Reg Wilson.

Christine (Honor Kneafsey) e Florence Green (Emily Mortimer) em "A Livraria" da catalã Isabel Coixet

Adaptação do romance homônimo de 1978 da escritora Penelope Fitzgerald, “A Livraria” de Isabel Coixet articula o drama de forma poética e melancólica aproveitando o impacto artístico, humano e existencial da literatura como pano de fundo das experiências de vida, das tentativas de recomeço, das esperanças e das relações interpessoais da viúva Florence Green (Emily Mortimer), uma mulher independente, corajosa, a frente de seu tempo e, por isso, alvo de conflitos pessoais comezinhos, invejas, dissidências, intolerâncias e traições oriundas de um provincianismo escuso, arcaico e retrógrado. Alguns anos após a morte do marido, Florence decide abrir uma livraria na “pacata” Hardborough, cidadezinha litorânea da Inglaterra no final dos anos de 1950. Ao persistir na compra de um casarão antigo e tradicional do local para concretizar o empreendimento, a confiante viúva não esperava enfrentar a resistência de alguns “ilustres” moradores, sobretudo de Violet Gamart (Patricia Clarkson), uma figurona nobre, influente e invejosa que lançará mão de uma série de artimanhas que dificultarão a vida da protagonista e seu projeto “ousado” de tocar sozinha o próprio negócio. O roteiro do filme assinado pela própria Coixet concentra-se na disposição de uma mulher forte e decidida que ama os livros e a literatura, resolvendo assim abrir uma livraria para consagrar este amor e homenagear o marido, cujo gosto artístico e poético, constituía um dos elos sentimentais mais fortes entre o casal. A dificuldade de Florence em realizar o projeto da livraria aparece representada numa espécie de má vontade e desconfiança comunitária, manifestada muitas vezes de forma velada ou lacônica, uma vez que toda esta contrariedade e resistência em relação à destemida viúva e sua iniciativa não são expostas gratuitamente, artifício inteligente da trama que exige do expectador participação ativa na identificação dos elementos do conflito, cuja conexão com fatores ligados a preconceitos sociais, principalmente classistas e machistas permeiam boa parte das situações dramáticas. Desta forma, “A Livraria” desenvolve seu enredo deixando evidente a negação categórica dos moradores influentes de Hardborough no que diz respeito a um gesto considerado afronta, ousado e impróprio, em se tratando de uma mulher sem uma figura masculina para conduzi-la. A exclusão, o isolamento, a trapaça, a força do poderio econômico, a influência política maquiavélica e a traição são alguns dos mecanismos inescrupulosos que Florence enfrenta com muita coragem e dignidade, buscando prevalecer-se frente ao ímpeto predatório provinciano que embora Isabel Coixet não alivie, já que sua heroína é constantemente alvo de sofrimentos e armadilhas vis, pelo menos contrapõe com alguma ponta de esperança ao exaltar a postura resiliente, intrépida e humana da mulher que sensibiliza, encanta e inspiram ao menos dois personagens bastante autênticos e sinceros do filme, representados pela leal garotinha Christine (Honor Kneafsey) e pelo enigmático e austero ancião Edmund Brundish (Bill Nighy). Ainda que “A Livraria” apresente alguns momentos de desprendimento narrativo, alívio cômico e romance que podem levar o expectador a acreditar num desfecho feliz daqueles acontecimentos, o drama da protagonista não se perde de vista, ratificando certo olhar pessimista do mundo e da sociedade, talvez menos cruel quando ao final se constata que o exemplo de Florence transformara sensivelmente o destino de Christine, a narradora da história que se torna também uma apreciadora da literatura e proprietária de uma livraria (“nunca se está sozinha quando há a companhia dos livros”).

Bill Nighy vive o velho e solitário Edmund em "A Livraria"

A série de obstáculos e sabotagens orquestradas, sobretudo por Violet, a arrogante, dissimulada e invejosa ricaça de Hardborough, contam com a ajuda do esposo, o General Gamart (Reg Wilson), do falso Milo North (James Lance) e do banqueiro Mr Keble (Hunter Tremayne), personalidades cujas ações interesseiras e inescrupulosas tornam a vida e projeto da personagem de Emily Mortimer ainda mais difícil. Por se tratar de uma trama que versa sobre personagens que amam a literatura, exaltando o valor imprescindível desta forma de arte como necessidade humana fundamental, a referência a algumas obras clássicas de escritores consagrados do século XX dão o ar de sua graça, movimentando de forma discreta, certos elementos dramáticos da narrativa como no caso de “As Crônicas Marcianas, 1950, Ray Bradbury”, um dos livros que Florence envia ao velho Edmund, além de “Lolita, 1955, Vladimir Nabokov”, publicação tabu, polêmica e perturbadora para os costumes de um vilarejo tradicional e religioso. As lentes da diretora catalã se concentram na abordagem do drama melancólico e poético, perscrutando os olhares, os gestos e atitudes evasivas que comunicam grandes sentimentos sem que o diálogo se torne tão necessário. A câmera parcimoniosa, a fotografia intimista e discreta utiliza alguns planos contemplativos, closes e planos detalhes interessada em manifestações dramáticas profundas, numa direção de atores obstinada e sensível. Por outro lado, o mise en scene que conjuga personagens e ambientes, além de construir alguns momentos sublimes e poéticos no filme, pontuado por uma trilha instrumental melancólica ou pela ausência desta, articula uma semântica visual oportuna, delicadamente disposta na montagem (Florence e a livraria; Edmund em sua velha mansão; Violet e a opulência fútil da sua residência, etc.). O interesse de Isabel Coixet pelo lado duro da vida e da existência dita o tom pessimista em “A Livraria”, intensificado por uma atmosfera de indiferença, falsidade e hipocrisia de certos habitantes do vilarejo que oprimem a corajosa viúva. Destaque para a intensidade expressiva de Emily Mortimer como a intrépida e perseverante Florence Green, cuja timidez, delicadeza e humanidade transmitem a falsa aparência de fragilidade. Patricia Clarkson transmite com segurança e desenvoltura a arrogância elegante, a dissimulação e a futilidade esnobe da megera aristocrata Violet Gamart, capaz de suscitar ódio e asco através do semblante altivo e do traquejo corporal. James Lance imprime malícia e mal caratismo ao oportunista Milo North, sujeito canalha e falso galanteador, um dos grandes responsáveis pela frustração dos sonhos e projetos de Florence. Já Honor Kneafsey é pura sinceridade e espontaneidade como Christine, a pequena funcionária improvável da livraria, influenciada pela coragem e virtude da protagonista, fundamentais para o seu destino e trajetória de vida. Por último, cabe mencionar a sisudez intermitente, carrancuda e o comportamento antissocial que Bill Nighy empresta a Edmund Brundish, o enigmático e recluso senhor que encontra na literatura um alento para a solidão e em Florence, uma chama de admiração e carinho há muito perdida. O drama de Isabel Coixet ratifica uma certeza quase improvável frente a certos aspectos implacáveis e opressores da vida social. Esta certeza se traduz no fato de que todo esforço genuíno, íntegro e sincero tende a resplandecer e a sementinha da intrépida heroína, no fim das contas, converteu-se em frutos.


Por: Ábine Fernando Silva

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