Direção: Carl Theodor Dreyer
Roteiro: Carl Theodor Dreyer e Joseph Delteil
Elenco principal: Renée Jeanne Falconetti, Antonin Artaud, Eugène Silvain, Maurice Schutz, André Berley, Michel Simon, Jean d'Yd, Louis Ravet.
Considerado um dos filmes mais importantes de todos os tempos, “A Paixão de Joana D’arc” de Carl Theodor Dreyer ganhou notoriedade e prestígio entre críticos, estudiosos e amantes do cinema graças a algumas versões remanescentes e mutiladas, muito destoantes da original, cujos negativos acabaram tragicamente queimados. Somente em 1981, com a descoberta de uma cópia dinamarquesa com o corte do próprio diretor, este grande clássico pode ser definitivamente apreciado, ratificando a profusão e todo alcance expressivo do cinema mudo que já experimentava um momento de transição radical com a inserção do som, tornando-se uma obra única e influente em termos artísticos e dramáticos. Focado no turbulento processo de julgamento da célebre heroína francesa capturada pelas tropas borgonhesas em 1430, a narrativa de Dreyer acompanha os últimos passos de Joana D’arc (Renée Jeanne Falconetti), todo seu sofrimento e abnegação ao defrontar-se com lideranças eclesiásticas convencidas a condená-la por heresia a qualquer custo. Descortina-se o “martírio” de um processo religioso de cartas marcadas e que simula considerar a possibilidade de defesa, absolvição e estabelecimento da justiça, no entanto, a tônica punitiva inexorável, traduzida no engodo, na tortura física e psicológica acaba inevitavelmente lançando ao fogo a combalida ré. O roteiro do longa escrito pelo próprio diretor em parceria com Joseph Delteil inicia buscando atribuir status verídico aos eventos narrados, uma vez que a trajetória do julgamento de D’arc, cerne do enredo do filme, teria sido extraída de documentos históricos reais. Desta forma, o expectador testemunha os meandros de um processo de acusação implacável de lideranças católicas que se empenham em condenar uma mulher intimidada e coagida, cujo semblante humilde, casto, angelical e o comportamento prostrado e resiliente contrasta e contradiz a natureza das acusações apologéticas severas que pretendem eliminá-la. O julgamento escancara o ódio e a ânsia punitiva de personagens masculinos tradicionais, formado em sua maioria por anciãos hipócritas e mal intencionados, explorando-se o viés brutal da tortura como elemento de justiça, o uso maquiavélico da mentira e da violência. A associação entre a imagem da protagonista e a de “Jesus Cristo” é simbólica e espontânea, principalmente quando se leva em consideração o sacrifício e o peso por carregar nas costas as injustiças e a culpa alheia. Ora, a imagem de seus algozes também está diretamente ligada à conduta farisaica exposta nos evangelhos, prevalecendo à força da opressão institucional, o poder ortodoxo da lei que conscientemente fecha os olhos para àquilo que não compreende e que não se encaixa em padrões sociais rígidos (a atitude da jovem em se vestir como soldado, adotar um corte de cabelos curtos e lutar num exército masculino configuravam evidências pecaminosas que pesaram sobre ela). O texto de Dreyer e Delteil investe num drama irremediável e sufocante, exigindo do elenco uma representação intensa, expressiva e sincera, cujos diálogos ou mesmo o uso do som tornam-se dispensáveis na articulação de uma cinematografia visualmente eloquente e metafórica. A direção do cineasta dinamarquês utiliza uma decupagem comprometida em destacar o sofrimento e o infortúnio da acusada, perceptivelmente encurralada numa condição sem subterfúgios, onde planos mais fechados e sufocantes, com o uso de muitos closes ditam uma tônica claustrofóbica e hostil, suscitando no expectador angústia e indignação. Às vezes, os eventos são abordados por meio de leves transições da câmera em planos sequencias que exploram sensivelmente os ambientes e pessoas ou então, prevalece o registro mais extático e os enquadramentos fechados que captam com agudez as expressões, gestos e olhares que comunicam sentimentos e emoções turbulentas. Embora o filme possua cerca de oitenta e dois minutos, contando com uma edição coesa e fluída, a constância da matéria opressiva e torturante pode tornar a sensação do ritmo narrativo moroso, denso e carregado. O perfeccionismo diligente da direção em captar uma representação dramática intensa que põe em conflito Joana D’arc e seus acusadores reforça ainda mais a perspectiva fatalista pré-anunciada, gerando revolta e chocando pela violência e deslealdade do processo. A fotografia realista em preto e branco contempla com crueza as reações e erupções emotivas dos personagens, além de absorver um design de produção austero e minimalista, repleto de objetos cristãos metafóricos que se relacionam com o calvário experimentado pela personagem de Falconetti. E por falar nisto, as atuações da atriz francesa são surpreendentemente sinceras e impactantes, graças não só a sua entrega e talento, mas também a crueldade exigente de Dreyer que além de repetir incansavelmente as tomadas, perseguindo um resultado “perfeito”, acabou forçando a jovem a se acidentar quebrando a perna, cortando seus cabelos com brutalidade, isolando-a do resto do elenco e fazendo-a ajoelhar-se sobre pedras pontiagudas na cena final. Todos estes abusos e excessos em “nome” da sétima arte interromperam precocemente a carreira de Falconetti no cinema, haja vista a seriedade do trauma que marcou para sempre a vida da francesa. Cabe mencionar o tom irônico, malicioso e perverso que Eugène Silvain empresta ao inquisidor teólogo Pierre Cauchon; a dissimulação e a falsidade comunicadas nas feições maléficas de Maurice Schutz como o enganador padre Nicolas e ainda a sinceridade e a pureza que Antonin Artaud expressa na pele do frade Jean Massieu, única figura eclesiástica realmente convencida do absurdo e do arbítrio no julgamento que condenou Joana D’arc à fogueira. “A Paixão de Joana D’arc” é uma experiência cinematográfica única, histórica, arrebatadora e assim como sua heroína e santa, misto de verdade e mito para os franceses, carrega as marcas controversas e polêmicas de uma produção forjada a ferro e fogo, insistente e preterida, maldita e fascinante.
Por: Ábine Fernando Silva
Texto muito bem escrito.