Direção: Masaki Kobayashi
Roteiro: Shinobu Hashimoto
Elenco principal: Toshiro Mifune, Tatsuya Nakadai, Yōko Tsukasa, Gō Katō, Etsuko Ichihara, Tatsuo Matsumura.
“A Rebelião” de Masaki Kobayashi insere-se numa tradição “jidaigeki” cuja força dramática bebe na rica fonte das intensas transformações históricas e socioculturais ocorridas no Japão durante o período Edo (1603-1868), interessando-se, em particular, pela natureza e os desdobramentos de um conflito que engendra um mote arbitrário e desonroso levado a cabo por um influente daymio do Xogunato. Kobayashi parte de um contexto de estabilidade social, fruto da pacificação interna e da centralização política, fatores que tornaram a classe guerreira abundante e ociosa, para articular uma trama repleta de tensões solenes que desmascaram e denunciam os excessos do poderoso Lorde Masakata (Tatsuo Matsumura), colocando em evidência certos dilemas morais e os rígidos códigos do bushido, fazendo jus à rebelião não apenas como vingança e resistência em nome do amor, mas também como ação catártica capaz de ressignificar a pacata existência do espadachim Isaburo Sasahara (Thoshiro Mifune). No ano de 1727, o respeitado clã Aizu experimenta uma tranquila paz em seus domínios, até que seu Lorde depois de uma briga com a esposa Ichi (Yôko Tsukasa) decide dispensá-la, ordenando que a mulher se case com Yogoro Sasahara (Gô Katô), o primogênito do seu mais habilidoso e renomado chefe de cavalaria. A princípio resistente em relação a uma resolução brusca e arbitrária, Isaburo cede às pressões burocráticas e aceita o matrimonio do filho, finalmente encantando-se pela nora e rendendo-se à harmonia e a felicidade absoluta no lar. Não obstante, o caprichoso Masakata após a morte do seu herdeiro, ignora a disposição anterior e exige o retorno imediato da ex-companheira ao seu castelo. Desta forma, em nome da honra e do amor os Sasahara se insurgem contra seu próprio clã, encarando o duro dilema de enfrentar Tatewaki Asano (Tatsuya Nakadai), o honorável amigo do mestre Isaburo. O roteiro de Shinobu Hashimoto adaptado do conto “Hairyozuma shimatsu” de Yasuhiko Takiguchi propõe um minucioso raio-x das relações sociais no alto estamento de um influente daymio em pleno período Edo (1727), descortinando um drama de natureza moral e política que possui suas raízes no excesso da concentração de poderes nas mãos dessas grandes casas senhoriais e evidenciando, nesse processo, a condição singular da classe samurai forjada não somente numa ortodoxia ético-moral, mas lapidada para uma espécie de existência guerreira devotada e ativa. Ora, a trama de “A Rebelião” ao passo em que ilustra bem esse contexto de pacificação territorial alcançado pelo Xogunato, chama à atenção para o conflito intestino dos Aizu cujos pressupostos tirânicos e imorais chocam-se inevitavelmente com os valores e os altos ideais do bushido cultivados pelo personagem de Mifune, denunciando certa decadência e corrupção de valores nos altos escalões da nobreza. A narrativa do diretor japonês prima pela construção da encenação solene e disciplinada, pela descrição de comportamentos protocolares, de mesuras e detalhes formais nas relações institucionais (expressa inclusive nos diálogos), lançando luz aos aspectos culturais e a tradição dos costumes naquela sociedade, mas, destacando um modus operandi de toda uma hierarquia de comando burocrático calcada na aparência da retidão e do bom senso e que, no entanto, revela-se chantagista e intimidadora, na medida em que aos vassalos não lhes restam tantas escolhas a não ser se dobrarem as pressões e caprichos dos superiores, haja vista a possibilidade real de represálias, perda do status e influência.
Para o experiente chefe da cavalaria pouco importa a posição social, as obrigações da vassalagem e o prestígio junto ao Lorde, uma vez que a honra de sua família é maculada e acima de tudo, a união sincera entre Yogoro e Ichi, espécie de concretização de seu desejo íntimo não consumado no casamento, posto sob ameaça. Cabe destacar ainda que a condição da mulher nesse cenário patriarcal e truculento soa menos opressora quando o foco é o lar dos Sasahara, isto porque além da matriarca Kiku (Etsuko Ichihara) influenciar decisivamente os rumos da família, a nora também é legitimada, tendo voz ativa ao escolher não abrir mão do jovem que veio a se tornar seu verdadeiro amor. Embora titubeie a princípio diante das pressões e exigências da posição, o valoroso samurai acaba rejeitando uma lealdade interesseira e todo àquele universo de falsas cerimônias dos figurões do clã, encontrando na rebelião o subterfúgio e o motivo para alcançar a justiça, reascendendo o fôlego de vida e a chama guerreira há muito adormecida. De maneira geral, o roteiro de Hashimoto envereda-se pelo drama advindo das arbitrariedades do poder, privilegiando o retrato cerimonial dos abastados do clã e o conflito de interesses propulsor das tensões dramáticas, secundarizando a ação dos combates como extravaso ao final do terceiro ato e colocando frente a frente num confronto épico Isaburo e seu caro amigo Asano. Aliás, o longa faz questão de por em evidencia através do companheirismo leal e reverencioso da dupla de mestres samurais, todo zelo e devoção ao bushido, concepção idealista fascinante capaz de nutrir o antagonismo de dois sujeitos valorosos, conferindo à experiência narrativa um sabor trágico estimulante, repleto de expectativa em torno do derradeiro e inaudito combate. A direção de Masaki Kobayashi desenvolve o conflito no interior do clã sob a ótica de um formalismo estilístico e de um controle apurado da mise-en-scene observado, sobretudo, na forma simétrica e organizada em que se decupa e fotografa-se os cenários sóbrios e solenes, a cerimonia das funções e as regras de etiqueta das relações sociais daquela elite nobre. A disciplina dos gestos, do trato e dos diálogos, inclusive no convívio familiar mais íntimo, é revelada, muitas vezes, por enquadramentos mais abertos à altura do tatame (a la Ozu), assim como o uso das movimentações de câmera em Dolly In e os closes incisivos são bem orquestrados para captar tensão e sugerir arroubos e conflitos emocionais. O domínio narrativo do cineasta japonês sobre sua matéria dramática transparece na condução calculada da encenação formal e soberba, muito bem alinhada ao minimalismo austero do design de produção e as modulações pontuais da trilha instrumental folclórica para aguçar a intriga, a sensação de dúvida e a revolta, assim como desnudar por um lado, a hipocrisia de certas relações, e por outro, a virtude de ideais elevados. O equilíbrio estilístico do filme, muito seguro de si, acaba escorregando um pouco em suas elipses, suscetíveis em causar algum estranhamento temporal no público; nada que comprometa o ritmo dramático dos eventos que gestam o terreno fértil para a distensão do clímax da ação final, onde se privilegia a coreografia e a plasticidade da habilidade com a espada dos guerreiros, através dos enquadramentos abertos, dos planos detalhes e da montagem tensa. O excepcional trabalho de Masaki Kobayashi com “Harakiri” de 1962 abriu caminho e possibilitou mais uma formidável experiência crítica de revisita a aspectos tradicionais da cultura e da sociedade nipônica com “A Rebelião”. Esse debruçar-se sobre um passado Xogunal, tão recorrente na produção cultural do país, reitera a denúncia sobre os vícios e injustiças inerentes ao poder, mas evoca e promove o fascínio à essência idealista do bushido, tão identificada à alma japonesa na posteridade.
Por: Ábine Fernando Silva
Muito bom!