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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Bacurau (2019)

Direção: Kléber de Mendonça e Juliano Dornelles

Roteiro: Kléber de Mendonça e Juliano Dornelles

Elenco principal: Bárbara Colen, Silvero Pereira, Thomas Aquino, Sônia Braga, Wilson Rabelo, Udo Kier, Karine Teles, Antonio Saboia, Lia de Itamaracá.

Disponível: Globopay

Silvero Pereira interpreta o fora-da-lei Lunga em "Bacurau"

Um dos filmes nacionais mais importantes da segunda década do século XXI, “Bacurau” de Kléber de Mendonça e Juliano Dornelles lança mão, de forma bastante oportuna e peculiar, de uma estética consagrada pela tradição do cinema de gênero para articular uma mensagem social poderosa sobre resistência e que insiste em desconstruir certa tendência do senso comum em desacreditar as capacidades coletivas e orgânicas do povo brasileiro em sua luta histórica pela sobrevivência a margem do processo institucional e civilizatório. A obra dos diretores pernambucanos além de representar uma visão política combativa e divergente em relação ao atual contexto de retrocesso democrático no país, oxigena e redimensiona criativamente a forma como são tratados certos temas, às vezes, até taxativos e estigmatizados, da nossa produção cinematográfica, convidando um tipo de espectador mais abrangente a reconhecer os dramas da realidade brasileira sob uma roupagem menos ortodoxa e muito mais hollywoodiana. Num futuro próximo, o povoado de Bacurau no sertão pernambucano persiste cultivando suas relações comunitárias e tradições, enfrentando também seus problemas sociais históricos. De repente, estranhos eventos passam a assolar os seus habitantes como o desaparecimento do vilarejo nos GPS e radares virtuais, a visita repentina de um casal de motoqueiros forasteiros, a presença de drones sobrevoando o espaço aéreo, buracos de bala no caminhão pipa que abastece a comunidade e a descoberta de uma chacina numa fazenda da região. Bacurau percebe então que está sob iminente ataque, reunindo-se em torno das lideranças de Plinio (Wilson Rabelo), Teresa (Bárbara Colen), Domingas (Sônia Braga) e dos fora-da-lei Pacote (Thomas Aquino), Lunga (Silvero Pereira) e seus pistoleiros Bidê (Uirá dos Reis) e Raolino (Valmir Côco), montando, desta forma, uma estratégia organizada para derrotar seus cruéis invasores. O roteiro assinado pelos próprios realizadores apresenta logo de cara uma trama consciente da importância territorial do espaço geográfico enquanto reconhecimento institucional legitimado no mundo, mergulhando o espectador de fora para dentro no seio de uma singela cidadezinha do sertão nordestino, cuja existência real o enredo coloca em xeque, fomentando a premissa da invasão estrangeira, misto de imposição etnocêntrica escrachada e safári humano patrocinado, justificando e naturalizando a forma como os sertanejos dali acabam lidando com a violência através da necessidade de resistência, o que por sua vez, revitaliza a metáfora de “nova Canudos” e a ideia de “cangaço moderno”. Embora o texto do filme lance luz sobre a problemática social do “lugar esquecido” e “abandonado” pelo poder público, fica evidente que as atenções de Mendonça e Dornelles estão voltadas para a construção de um universo ficcional onde a própria coletividade protagonista ganha corpo, desbancando o heroísmo individual comum nos gêneros que o longa recicla (principalmente o western, o suspense e o gore) e privilegiando os mecanismos de coesão comunitária, o senso solidário e a conexão com as raízes culturais como elementos fundamentais da manutenção e da sobrevivência histórica do vilarejo.

A força de Bacurau advém da sua organização e valentia coletiva

A trama descarta a solução individual e promove a tese da resistência coletiva, seja quando ilustra as tentativas de superar problemas estruturais (a seca, a falta de infraestrutura, alimentos e remédios), seja quando reafirma costumes e rituais (a celebração do velório, o consumo generalizado do psicotrópico, a valorização do museu), seja quando rechaça qualquer prerrogativa moralista integrando todos os seus (acolhem-se prostitutas, pistoleiros e ladrões) e finalmente, quando aborda os estratagemas de luta e defesa do povoado (a comunicação eficaz, a consciência política contra as manobras do prefeito, a tomada de decisões em assembleia e a disposição valente para guerrear contra os gringos). O roteiro realoca certos elementos do cinema de gênero adequando-os a um enredo intimamente ligado à realidade social e cultural do sertão pernambucano, transitando pela ficção distópica, o drama social, o humor cáustico, mas, concentrando seu vigor dramático num suspense apreensivo que vai plantando no decorrer dos acontecimentos uma série detalhes mais ou menos simbólicos que alimentam o plot, talvez insuspeito para a maioria dos espectadores, da invulnerabilidade beligerante de Bacurau, culminando na ultraviolência gráfica e no banho de sangue de uma vingança brutal e um extermínio as avessas, aludindo, finalmente, ao faroeste espaguete e ao terror gore. Kléber de Mendonça e Juliano Dornelles não exploram tanto os motivos reais da invasão sanguinária da equipe de caçadores estadunidenses negociada com o salafrário prefeito Tony Júnior (Thardelly Lima), no entanto, uma série de considerações e hipóteses é evocada pela presença violadora e psicótica de brucutus fascistas e descerebrados, liderados pelo militar veterano Michael (Udo Kier). Passando pela ideia de “game” imperialista consentido por traidores do povo e pelo extravaso sádico de limpeza étnica de viés racista, a obra dos cineastas nordestinos vinga em tela os historicamente oprimidos e espoliados estampando a mensagem ousada do “olho por olho, dente por dente” e canalizando certo fascínio pela herança do “banditismo social”, expressa nas figuras de Pacote e Lunga, como potência libertadora e revolucionária. A sensibilidade autoconsciente da direção em se aproveitar de elementos estéticos da linguagem do cinema de gênero deslocados do seu uso comum é um dos fatores que mais chamam a atenção em “Bacurau”, rompendo com certas expectativas do público e perseguindo, sobretudo, uma dramaturgia que preconiza a semântica do espaço físico, do design de produção e do protagonismo coletivo. A mise-en-escene moderna de Mendonça e Dornelles cobre cenários e personagens privilegiando os planos abertos e a profundidade de campo, os efeitos do uso de certas lentes focais e uma movimentação de câmera dinâmica e realista que registra com naturalidade a rotina dos moradores, seus costumes, conflitos e a maneira inteligente e disciplinada com que arquitetam sua resistência. O ritmo mais contido do filme em sua primeira metade atende tanto aos propósitos imersivos quanto à tensão do suspense, dinamizando consideravelmente seu fluxo quando o mistério dos invasores se revela ensejando a ação e o confronto. Talvez uma das maiores proezas dos realizadores pernambucanos é conseguir a partir de um registro humano intimista bastante simples e direto estabelecer uma empatia e um fascínio quase instantâneo entre o universo de Bacurau e o público, até mesmo em relação às personalidades ambíguas e criminosas, fator que, num primeiro instante, também funciona perfeitamente para escamotear o DNA belicoso de uma gente conectada à sua memória histórica e às suas raízes cangaceiras. A obra de Kléber de Mendonça e Juliano Dornelles ajuda a romper certos paradigmas e preconceitos normalmente atrelados à natureza estilística das produções cinematográficas brasileiras, talvez por isso, “Bacurau” alcance uma projeção e uma aceitação tão ampla do público, transitando tranquilamente entre o “popular” e o “erudito”, entre o “filme comercial” e o “filme de arte”.


Por: Ábine Fernando Silva

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2 Comments


erivaldo.martins1
Jun 18, 2022

Um salve grande. O cinema é a "sétima arte" (dizem) e, as "letras" a ferramenta primordial para todos os fins. Análise precisa da obra e suas dimensões cenico/diálogica. De todas as trilhas creio estar a sonora no inconsistente d@ espectad@r, além do elemento vital que sustenta, a meu ver, a trama toda. A água ou, a ausência (além de outras ausências) dela é que coloca Lunga e sua trupe em uma represa "seca". Fui contemplado com a análise.

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bruno sahara
bruno sahara
Jun 18, 2022

Gostei

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