Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Jonathan Nolan/Christopher Nolan
Elenco Principal: Christian Bale (Bruce Wayne / Batman), Heath Ledger (Coringa), Aaron Eckhart (Harvey Dent/Duas Caras), Michael Caine (Alfred), Morgan Freeman (Lucius Fox), Gary Oldman (James Gordon), Maggie Gyllenhaal (Rachel Dawes).
“Batman: O Cavaleiro das Trevas” é o segundo episódio da aclamada trilogia dirigida por Christopher Nolan que na esteira do seu antecessor “Batman Begins", continua perseguindo uma abordagem mais séria e realista na representação mitológica do icônico vigilante de Gotham. Abertamente inspirada na lendária série de Hq's "Batman: The Dark Knight Returns” escrita por Frank Miller em 1986, o filme de Nolan apresenta aqui o enigmático Coringa (Heath Ledger), o famigerado palhaço do crime, certamente o maior e mais popular de todos os antagonistas de Batman (Christian Bale). A partir do universo e da atmosfera do projeto anterior, "Batman: O Cavaleiro das Trevas" tenta articular uma narrativa ainda mais ambiciosa e que amplia o escopo mítico e estético do herói, lançando mão de um enredo profuso e cerebral que incorpora temáticas e debates sociológicos atuais, além de promover uma trama sólida e engenhosa que costura com perspicácia seus diversos arcos e personagens. O pano de fundo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” leva em consideração alguns elementos contextuais da história pregressa como a realidade já instaurada em Gotham de um combatente do crime, cujo exemplo e anonimato influenciaram uma série de pessoas comuns a colocarem suas próprias vidas em risco, perturbando o protagonista que acaba considerando a possibilidade de abandonar sua holofótica cruzada justiceira. Além do mais, menciona-se a reconstrução da mansão Wayne que realoca o esconderijo do Homem-Morcego, Lucius Fox (Morgan Freeman) agora encabeça o império empresarial de Bruce, o mordomo Alfred (Michael Cane) paterno e acolhedor continua com seus sábios e instrutivos conselhos de sempre e James Gordon (Gary Oldman) que ainda não ostenta o cargo de Comissário segue sua parceria leal com Batman. Finalmente, entra em cena o enigmático e controverso Coringa, criminoso responsável por causar um verdadeiro frisson entre a bandidagem e as autoridades da cidade e que ao final da trama anterior havia deixado uma carta de baralho ilustrativa como cartão de visitas, prenúncio do caos que promoveria. Para além do insano vilão, a história de origem de Harvey Dent, transformando-se no lunático e inconsequente Duas Caras (Aaron Eckhart) confere também ao enredo do filme uma dimensão dramática ainda maior, uma vez que o resultado da metamorfose física e mental do personagem passa necessariamente pelo fulcro das ações e influências diretas da dupla principal de antagonistas, que para usar o trocadilho do próprio Harvey, podem ser encarados como dois lados de uma mesma moeda. Harvey Dent personificaria a idoneidade institucional e implacabilidade da justiça contra os bandidos que lançaram Gotham na lama, tudo que Bruce Wayne jamais alcançou sem ter que recorrer aos artifícios de Batman. Ora, o próprio promotor legitima a existência do justiceiro das sombras e admira-o, enxergando na sua conduta uma espécie de trampolim para limpar a cidade da decadência e da corrupção. A representação ideal de Bruce, encarnada em Harvey é tão irônica e sarcástica que nem mesmo Rachel Dawes (Maggie Gyllenhaal), paixão de infância do protagonista, escapa às artimanhas do destino que a faz companheira e amante do promotor. Nolan tece no emaranhado da utopia social e da busca por uma Gotham melhor, identificações pessoais, admirações e sentimentos íntimos que servirão como um prato cheio para o inescrupuloso e metódico palhaço virar tudo de ponta a cabeça.
O roteiro aposta nesse conflito de maneira avassaladora e tal aposta, mais do que acertada, promove o Coringa como a ameaça imprevisível, ilógica e letal, uma vez que sua perspicácia estratégica transmite a falsa aparência de sandice e anarquia, contraditoriamente comprovada por seus planos minuciosos e pragmáticos. A figura da incógnita, do incerto e do imprevisível (que se estende para o mistério da origem do próprio vilão) desdobra-se no plano narrativo a partir do ponto de vista dos personagens que são envolvidos pelos resultados chocantes das artimanhas do ousado criminoso, principalmente o Homem-Morcego, desorientado e aturdido diante de questionamentos acerca da conduta niilista do palhaço que não se encaixa em categorias criminosas convencionais, fazendo com que Alfred em sua sabedoria alerte o herói, abrindo-lhe os olhos. Para os espectadores, o Coringa personifica a contradição e o caos por excelência, uma vez que nega a existência de planos (mas tudo que executa é muito bem planejado), inventa diferentes versões de um mesmo evento propositalmente (para confundir aqueles que desejam compreendê-lo) e elabora seu plano principal de destruição para comprovar a tese que defende com unhas e dentes de que o “homem é o lobo do homem” quando se instaura a anarquia social (não confirmada pois Gotham ainda mantém viva alguma chama de solidariedade humana). É impressionante e assombrosa a dimensão cerebral e metódica das ações premeditadas e cruéis do Coringa, envolvendo desde convulsões sociais à assassinatos sem a menor cerimônia. Espetacularização e publicidade contradizem essa anarquia do personagem, impelido a cometer atos de terrorismo inimagináveis para chamar a atenção do Batman, cutuca-lo e finalmente, tirá-lo do sério. É desta forma que o famigerado vilão rouba o dinheiro da máfia, assassina pessoas para que o justiceiro de Gotham revele sua identidade, envenena autoridades de justiça, sequestra Rachel e Harvey com o intuito de eliminá-los, forja sua própria prisão e ainda dá aquele empurrãozinho psicológico necessário para o Duas Caras surgir sedento de vingança. O estilo narrativo de Nolan conjuga arcos e personagens propondo um fluxo dinâmico e descontínuo de informações e eventos, fruto de uma obsessão peculiar pela semântica da montagem que, num primeiro momento, tenta rejeitar exposições mais óbvias. É claro que tudo acaba se encaixando e se explicando com o tempo, já que o diretor quer ostentar esse lado mais eloquente e prolixo de narrar, mas parece bem consciente da proposta blockuster e comercial da obra. Embora a presença do Coringa seja desestabilizadora e a violência intensa e recorrente, a obra mais sugere do que mostra, como acontece em “Batman Begins” , criando uma atmosfera de terror generalizada. O vigilante de Gotham ao superar os medos que o afligiam anteriormente prossegue aqui tendo que lidar com o dilema de abandonar de vez suas práticas soturnas e combativas tão cara aos criminosos, mas que alcançaram uma notoriedade perigosa, o que talvez tenha estimulado o surgimento do próprio Coringa, pertencente a um espectro delinquente que nega a bandidagem tal como ela normalmente se organiza, assim como obviamente representa o oposto dos ideais, valores e crenças promovidas pelo herói. O apoio à institucionalidade em vias de higienização por meio de Harvey Dent e James Gordon foi a saída encontrada por Batman para lidar com a questão. Em relação a Gordon, os pactos colaborativos com o Homem Morcego são ainda mais reforçados, seja pela tentativa de por um fim ao império econômico dos mafiosos na cidade ou adiantar-se aos estratagemas do palhaço, o que acaba lhe rendendo finalmente o cargo de Comissário de Polícia. Sobre a construção de personagem, Heath Ledger entrou de vez para o rol das brilhantes e inesquecíveis interpretações da História do Cinema, dando vida, personalidade e alma a uma figura cuja importância e complexidade só haviam encontrado respaldo no interior da própria linguagem artística que o concebera, ou seja, os quadrinhos. Ledger dá fôlego a um Coringa visivelmente transtornado, cujos gestos ansiosos e impulsivos se traduzem na forma de andar tensa e retesada, na risada nervosa e reprimida ou mesmo na repetição compulsiva de lamber os lábios e transmitir uma frieza e um vazio psicótico no olhar. O trabalho primoroso da maquiagem ressaltando as cicatrizes estendidas dos lábios às bochechas, assim como a pintura sinistra do rosto, meio borrada e o cabelo desgrenhado e sujo dão o toque original e sinérgico a um personagem definitivamente inesquecível. “Batman: O Cavaleiro das Trevas” tornou-se o filme mais cultuado da trilogia de Nolan, uma unanimidade quando se pensa em qualidade das adaptações do universo das Hq’s para as telas. Créditos para o diretor que concentrou empenho, realismo e ousadia para subverter um gênero até então levado pouco a sério, oferecendo, talvez, a experiência cinematográfica mais épica e extraordinária sobre o vasto universo do Homem Morcego.
Por: Ábine Fernando Silva
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