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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Black Rain: A Coragem de uma Raça (1989)

Atualizado: 7 de jul. de 2021

Direção: Shohei Imamura

Roteiro: Shohei Imamura, Toshirô Ishido

Elenco principal: Shigematsu Shizuma (Kazuo Kitamura), Shigeko Shizuma (Etsuko Ichihara), Yasuko (Yoshiko Tanaka), Kin (Hisako Hara), Katayama (Akiji Kobayashi).

Yoshiko Tanaka vive a jovem Yasuko em "Black Rain: A Coragem de uma Raça"

Retrato estarrecedor e chocante dos horrores provocados pela letalidade da ameaça atômica “Black Rain – A Coragem de Uma Raça” aborda sem subterfúgios o pesadelo no qual a população de Hiroshima foi submetida quando a bomba de hidrogênio varreu a cidade, exterminando a curto e longo prazo centenas de milhares de habitantes, seja na detonação imediata do lançamento, seja por meio do surgimento de doenças fatais oriundas da toxidade radioativa, manifestadas ao longo dos anos subsequentes ao desastre. Imamura desenvolve sua melancólica narrativa interconectando um presente nebuloso e instável com um passado do ataque desumano e devastador por meio da descontinuidade e dos flashbacks, sobretudo, do personagem Shigematsu Shizuma (Kazuo Kitamura) que juntamente com a esposa Shigeko Shizuma (Etsuko Ichihara) e com a sobrinha Yasuko (Yoshiko Tanaka) atravessam uma Hiroshima em escombros, agonizante e em frangalhos, um pandemônio com gente desorientada, muitos corpos carbonizados e decompostos, buscando proteção e abrigo na fábrica em que trabalhava e que se transformara em refúgio de vítimas diretas do ataque nuclear. O cerne do enredo é o quinquênio pós-bombardeio, mostrando como a família Shizuma se estabelecera num vilarejo rural, tentando reconstruir suas vidas e redirecionar seus destinos, assombrados pelas marcas indeléveis do trauma atômico que contaminara seus corpos e mentes. O impacto brutal da guerra e da bomba apesar de se fazer sentir nos costumes e tradições da sociedade japonesa de forma imediata (negativa a uniões matrimoniais com pessoas expostas a radiação), não alterou drasticamente a ortodoxia e inflexão pragmática de um povo que sempre se ancorou em suas práticas ancestrais e culturais. Desta forma, Imamura opta por transmitir os conflitos e ruídos do choque traumático radioativo perpassado na família, na comunidade e, sobretudo, nas tradições, com uma câmera que desvela intimidades, sensível, ao rés do chão e em planos que açambarcam a coletividade (lembrando Ozu), que salientam a importância das relações, identificando anseios temerosos, pequenas frustrações e derrotas quotidianas, tentativas insistentes em tocar a vida sob a sombra da tragédia iminente, a rotina transformada pela ansiedade e a loucura, etc. O uso da fotografia em preto e branco corrobora o clima triste, fúnebre, de personagens atormentados pelos efeitos da guerra, além de reforçar com vigor estético o design de produção dos destroços, da ruína e da carnificina que se abateu sobre Hiroshima, rememoradas por Shigematsu Shizuma. A resiliência do seguir em frente e não se afundar nas consequências de uma ferida aberta está presente no espírito da trama e na conduta dos personagens, muito conscientes das desgraças impingidas em suas existências, mas impassíveis e impetuosos em prevalecerem num mundo tão cruel, desumano cujos homens insistentemente, como uma tendência cármica, repetem os mesmos erros. Desta forma, acompanhamos a rotina de um vilarejo habitado por muitas pessoas que viveram na pele a catástrofe inenarrável de Hiroshima, levando suas vidas sem a queixa ou uma crítica direta, expressa, clara e lúcida sobre os motivos e conduta de quem lhes imputou tamanha barbaridade e terror (há um clima de aceitação do sofrimento, um tabu em problematizar e refletir de forma aberta e coletivamente a barbárie sofrida).

Etsuko Ichihara (Shigeko Shizuma), Yoshiko Tanaka (Yasuko) e Kazuo Kitamura (Shigematsu Shizuma)

Por outro lado, a tradição, a família e os costumes comunitários são a legitimação da vida e do anseio consciente de deixar um legado ou uma marca no mundo. O senhor Shigematsu e sua esposa, impossibilitados de gerarem filhos, depositam suas esperanças nos cuidados e projetos para a sobrinha Yasuko, a quem desejam casar a todo custo (principalmente com alguém de importância social) para que a perpetuação familiar de alguma forma prevaleça e mais um ciclo de continuidade das tradições prospere a partir do matrimonio da jovem. O longa explora veementemente a conduta de um povo cujos valores compartilhados tem força de lei, com sólidas estruturas éticas e institucionalidade (os diários familiares são um exemplo da memória viva e além de tudo, da verdade). Além do casamento e da disciplina coletiva e solidária, “Black Rain: A Coragem de uma Raça” reforça o poder da ancestralidade e da família como elementos fundantes da personalidade, da visão de mundo e das relações sociais, seja pelas mágoas da senhora Shigeko que se ressente por não se achar “tão boa” quanto à irmã falecida do marido, recebendo certo desprezo da sogra (a simpática anciã que confunde a neta Yasuko com a filha), ou mesmo pela influência do xamanismo e do culto honorável aos antepassados que de alguma forma influenciariam a vida dos vivos. À medida que os planos de casamento da família Shizuma se frustram (os pretendentes acabam sabendo do episódio da chuva negra e da radiação que atingira a jovem Yasuko cinco anos antes), a moça indiferente e alheia, aproxima-se do vizinho louco, unindo-se sentimentalmente ao desorientado rapaz, ex-soldado (agora escultor), perturbado mentalmente por causa dos horrores da guerra (o personagem surta ao ouvir barulho de motor, acreditando se tratar de combatentes inimigos). Numa espécie de efeito “dominó”, alguns moradores do vilarejo passam a morrer, como os amigos do protagonista, também vitimados pela radiação, assim como sua própria mulher, a senhora Shigeko. A manifestação da doença que tomava gradativamente o corpo de Yasuko - que escondia suas feridas dos tios – finalmente a debilita, prostrando a pobre moça, levando seu companheiro alucinado e seu consternado tio a expectativas e esperanças vãs. “Black Rain – A Coragem de uma Raça” traz em seu bojo a metáfora da “carpa” como representatividade de um povo que não se curva, que insiste e persiste frente às adversidades (vide que esta espécie de peixe costuma nadar contra a corrente) e é assim que o enredo investe seus personagens, com uma convicção vital, existencial e uma aposta na vida sem titubeios, mesmo que a própria condição e destino reservem o pior. A cultura de criação das carpas entrecorta em certos momentos a trama, mostrando a interação dos personagens afetados pela radiação envoltos em certo clima de otimismo, entusiasmo, desprendimento e desfrutando de um lazer fugidio, de um prazer coletivo e fraterno que distrai, entretém e alenta. Yasuko já ao final do filme, a beira do lago junto com o tio, surpreende-se e emociona-se ao ver o salto de uma grande carpa, o que nos sugere a expectativa de uma reviravolta em seu estado decadente e moribundo, um sinal de bom augúrio, no entanto, como não poderia deixar de ser, a direção ratifica o tom lúgubre e a fatalidade inexorável do roteiro, com um desfecho para lá de melancólico e desalentador, característica inconfundível do cinema de Imamura (a mudança não consumada na lastimável situação da jovem Yasuko representada pela esperança vã da manifestação de um arco-íris que atravessaria o horizonte numa paisagem triste e sem cor).


Por: Ábine Fernando Silva

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