Direção: Ridley Scott
Roteiro: Hampton Fancher e David Peoples
Elenco principal: Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, Joe Turkell, James Hong.
“Blade Runner: O Caçador de Andróides” figura como uma daquelas obras cuja História do Cinema tratou de redimir ao longo de alguns generosos anos após seu lançamento, adquirindo com justiça aquela "áurea" de cult-movie. Não era para menos, a versão estendida e mais acurada do diretor Ridley Scott, relançada para o consumo caseiro e recepcionada em um contexto estético diverso acabou permitindo que a adaptação cinematográfica do livro de Philip K. Dick, “Blade Runner: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” lograsse merecido êxito, afastando quaisquer "reticências" em relação ao verdadeiro valor artístico do projeto. O trabalho de Scott conseguiu reunir uma legião de admiradores fascinados com sua trama de ficção científica em estilo noir, cujo apelo visual futurista e sinérgico, alinhado à articulação de temas filosóficos e existenciais, transformou o filme numa espécie de referência absoluta do gênero. Na caótica e decadente Los Angeles de 2019, os desenvolvimentos da robótica, da engenharia genética e da inteligência artificial proporcionaram às corporações industriais, ou pelos menos a mais poderosa delas (Tyrell Corporation) a possibilidade de comercializar “máquinas” complexas, detentoras de potencialidades inimagináveis. Por outro lado, a miséria e as condições sociais alarmantes não foram superadas pelos avanços científicos e tecnológicos, sendo assim, o crescimento populacional descontrolado e as constantes crises globais de escassez lançaram as nações na corrida pela exploração interplanetária, utilizando para tal fim, mão de obra androide, o que fez eclodir um movimento de resistência protagonizado por um grupo de unidades replicantes de última geração, os “Nexus 6”. É neste contexto que Rick Deckard (Harrison Ford), um calejado caçador de recompensas em vias de se aposentar aceita a ingrata missão de “retirar” de circulação o pequeno núcleo rebelde, iniciando uma jornada cheia de descobertas, dilemas e revelações que acabam mudando por completo seu destino. O roteiro de Hampton Fancher e David Peoples possui a primazia em converter uma trama de ação detetivesca e futurista numa espécie de odisseia pessoal indagativa, auto reflexiva e reveladora, tudo isto, à medida que em que se passa a reconhecer como legítima a natureza, a motivação e a busca por respostas existenciais sensatas de renegados androides. A variedade e profundidade das questões filosóficas aparecem então conforme a busca de Deckard se intensifica, assim como todo o universo mitológico da narrativa se conecta aos personagens e seus dilemas. Explora-se a ambiguidade relativa ao conceito de humanidade quando se apresentam seres sintéticos com capacidades racionais e emocionais análogos aos dos homens. O protagonista, por exemplo, transparece um mal estar em ter que lidar ou punir de alguma forma “criações” tão perfeitas, com motivações plausíveis, e muito embora, leve a cabo a caçada, as contradições sentidas são muitas, ainda mais quando o solitário caçador se apaixona por Rachel (Sean Young), estabelecendo laços afetivos genuínos com esse modelo de última geração, inspirado na falecida filha do megalômano engenheiro genético Dr. Eldon Tyrell (Joe Turkell). O detetive mercenário que vive uma vida solitária e melancólica, mergulhado num isolamento antissocial antes de se relacionar com a bela Rachel passa a sentir o fardo de uma missão que se torna ingrata e maldita, e o decorrer dos acontecimentos vão deixando pistas sutis que colocam em dúvida, inclusive, sua própria origem e natureza humana, seja na cena do apartamento de Deckard quando seus olhos se assemelham aos da atraente replicante, seja no origami do unicórnio feito por Gaff (Edward James Olmos) que remete ao sonho do caçador ou mesmo seu próprio salvamento pelas mãos de Roy Batty (Rutger Hauer), icônico líder dos revoltosos Nexus 6 que possivelmente reconhece no protagonista um semelhante (há uma ambiguidade neste gesto, uma vez que Roy poderia estar também provando sua honra e valor em seu último fôlego de vida). Desta forma, a narrativa ganha dimensões de um drama pessoal, identitário e de sobrevivência cujo aspecto “noir” estetiza e promove. A trama de Ridley Scott descortina uma Los Angeles caótica, com uma diversidade étnica crivada de tensões sociais, onde avanços científicos clandestinamente “democratizados” configuraram uma realidade de intervenções humanas tecnológicas exóticas e excêntricas. Contraditoriamente, os homens continuam isolados e sozinhos, recorrendo à inteligência artificial como antídoto a esse mundo populoso, hostil e indiferente. Desde o personagem de Harrison Ford, passando por Tyrell, Hannibal Crew (James Hong) e Sebastian (William Sanderson), o expectador assiste a um desfile de figuras fechadas, egocêntricas, mórbidas, individualistas e pouco afeitas à sociabilidade.
"Blade Runner: O Caçador de Andróides” desenvolve a ação de investigação e perseguição concomitante àquela tradicional ideia "do mito da criatura que se volta contra o criador" para aqui reclamar o direito por “mais tempo”, manifestando o desejo de auto preservação e de perpetuação da vida, e julgando o ato da criação como prepotência divina irresponsável e amoral que brinca com a consciência, as emoções e o destino dos seres concebidos. Ora, o absurdo de tal existência, a efemeridade banal da vida e a impossibilidade orgânica limitadora em transformar o breve destino fatalista, alimentam a vingança dos androides contra seu nefasto pai e “Deus”, como no sinistro e fascinante conto de “Frankenstein”. A cinematografia estilizada do filme é mérito de uma direção megalômana que explora belos planos suntuosos e contemplativos de um ambiente urbano distópico, sombrio e turbulento. Constrói-se uma atmosfera fria e melancólica, com o uso de uma trilha instrumental deprimente, onde os espaços externos convulsivos, cortados por uma chuva intermitente e opressiva, contrastam com o alheamento dos personagens, seus comportamentos reclusivos e gestos inseguros. Predominam o registro fotográfico pouco iluminado em tonalidades frias, com certa insistência de tons azulados e pastéis, muito recorrente em espaços fechados. Neste fluxo, Scott convida o expectador a imergir num mundo em desintegração, cujo design de produção moderno de arranha-céus titânicos, anúncios em projeções coloridas deslumbrantes, carros voadores e muito neon, sobrepõem-se à sordidez retro do figurino exótico e da arquitetura de prédios decantes, ao lixo, à poluição atmosférica, e a criminalidade de um submundo marginal. Destaque para as atuações de Harrison Ford na pele do taciturno, inseguro e perturbado caçador de androides Rick Deckard, para Sean Young como a replicante Rachel, humanizada, sensível e sentimental, e finalmente para o sagaz e cerebral Roy Batty, interpretado com equilíbrio e altivez por Rutger Hauer. A força do tempo apenas ratificou a influência cultural inconteste e a soberania artística de “Blade Runner – O Caçador de Andróides” .
Por: Ábine Fernando Silva
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