Direção: Brian Singer/Dexter Fletcher (não creditado)
Roteiro: Anthony McCarten
Elenco principal: Rami Malek (Freddie Mercury), Lucy Boynton (Mary Austin), Ben Hardy (Roger Taylor), Gwilym Lee (Brian May), Joseph Mazzello (John Deacon), Allen Leech (Paul Prenter).
Cinebiografia de uma das bandas de rock britânica mais criativas, ecléticas e carismáticas dos últimos tempos, “Bohemian Rhapsody”, além de título do filme dirigido quase em sua totalidade por Brian Singer, é também o nome de uma das músicas de maior sucesso do Queen presente no álbum “A Night at the Opera” de 1975. A trama que se desenvolve a partir da perspectiva do personagem de Freddie Mercury (Rami Malek) narra a gênese do quarteto inglês de jovens músicos suburbanos talentosos, sua ascensão meteórica embalada por muitas apostas criativas e ousadas que de fato vingam, além de abordar os percalços pessoais e conflitos egocêntricos, advindos, sobretudo, da intensidade de uma fama avassaladora que arrebatou e transformou de uma vez por todas o destino de Roger Taylor (Ben Hardy), Brian May (Gwilym Lee), John Deacon (Joseph Mazzello) e obviamente Freddie Mercury, protagonista do longa e personalidade cujo destaque notório a frente da banda fomentou-lhe ilusões e rompimentos, lançando-o numa solidão desesperada seguida de uma reconciliação arrependida e da descoberta de contaminação pela AIDS, doença fatal à época. O filme aposta numa dinâmica narrativa que intensifica e acelera os acontecimentos de promoção e ascensão da banda, numa espécie de guinada com quase nada ou zero obstáculos, transmitindo uma certeza a respeito da genialidade e talento do quarteto que a coerência da realidade. A narrativa assertiva no lema de que o “Queen” merece uma homenagem sublime, a altura e reverenciosa transforma o roteiro de “Bohemian Rhapsody” numa grande veneração idealista de fã. A trama não se preocupa em aprofundar os dilemas, conflitos ou incertezas do grupo de jovens músicos e sempre que obstáculos, crises e desavenças de natureza mais séria acenam uma condescendência tácita, um otimismo ocasional e uma reconciliação banal açambarcam os rapazes, conduzindo-os ao que eles fazem magistralmente: canções empolgantes, originais e de sucesso garantido. Em contrapartida, quando a história se debruça sobre o personagem de Freddie Mercury a partir da perspectiva de seus conflitos íntimos, familiares ou de relacionamento amoroso, o longa ganha corpo, mesmo apresentando seu protagonista como um sujeito meio aquém, confuso em relação às rápidas transformações e descobertas que operam em sua vida. O relacionamento de Freddie com o grande amor da sua vida Mary Austin (Lucy Boynton) é retratado com delicadeza, certa profundidade sentimental, explorando a cumplicidade íntima e afetiva do casal, gradativamente abalada pelas crises de orientação sexual do vocalista do Queen que passa a ter experiências homoafetivas que o afastam definitivamente de sua companheira. Aliás, a abordagem das relações homossexuais do protagonista soa um tanto artificial e desonesta, como se ele tivesse sido cooptado ou influenciado por terceiros, no caso, Paul Prenter (Allen Leech) sujeito que acompanhava os produtores da banda inglesa, aproximando-se estreitamente do vocalista, aproveitando-se de seu talento, fama e dinheiro para tirar vantagens pessoais (há uma caracterização ingênua, desprovida de malícia e tato para perceber segundas intenções que tipificam o protagonista). No mais, os demais integrantes do Queen aparecem na maior parte do tempo ancorando as performances, ensaios, processos criativos, gravações e obviamente os shows extravagantes e espetaculares centrados em Freddie Mercury do que tendo suas personalidades e vidas satisfatoriamente contempladas. A intenção de transformar “Bohemian Rhapsody” em uma cinebiografia de banda é um engodo de marketing que em se tratando da grande expressão artística e icônica do carismático, enérgico vocalista, convenhamos não se fazia necessário.
A homenagem é diretamente dirigida a Freddie Mercury e o filme pulsa sua verve artística inconfundível, seu poder de fascinar com suas canções líricas arrebatadoras, sua voz estonteante e interpretações de palco inesquecíveis. Se tem uma coisa que o filme começado por Brian Singer e terminado por Dexter Fletcher faz bem é emendar uma música na outra, um hit em outro, no compasso dos acontecimentos biográficos e momentos dramáticos do longa, numa montagem eficiente e estratégica, com ritmo, domínio temporal, fluidez e até certo ponto, ofuscando os probleminhas de roteiro. A trilha sonora escolhida a dedo revela a mesura de um trabalho antenado com a preferência musical do público, valendo-se das composições mais marcantes do Queen para também embalar o enredo. A direção creditada exclusivamente a Brian Singer tem predileção pela fisicalidade da atuação espetacular de Rami Malek, construindo uma áurea mítica e fenomenal em torno do Queen, reproduzindo com estilo e extinto algumas apresentações reais e shows, fisgando o público pela emoção, saudosismo e realismo cênico (o último ato é a reprodução corajosa do show da banda no Live Aid, realizado em Londres em 1985). O trabalho dedicado e diletante de Rami Malek impressiona, seja pelos olhares, gestos, imitação vocal (o ator dubla uma boa parte das canções) e esforço físico para se parecer com o verdadeiro Freddie Mercury, mesmo com aquela protuberância forçada da prótese dentária ou com umas perucas duvidosas (a atuação de Rami Malek lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator em 2019). Apesar da abordagem tímida, Gwilym Lee além de estar idêntico ao guitarrista Brian May tem a circunspecção, a maturidade e a racionalidade para o equilíbrio e a harmonia do grupo. Ben Hardy vive o bateirista Roger Taylor intempestivo, com ideias e inspirações menos sublimes e acumulando algumas desavenças pessoais por conta das excentricidades e estrelismos do vocalista. Joseph Mazzello está tão discreto, mas tão discreto como o baixista John Deacon que corre o risco de passar despercebido. Cabe destacar as atuações emotivas e sinceras de Lucy Boynton que interpreta Mary Austin a companheira e amiga de toda a vida de Freddie. Os momentos dramáticos mais relevantes do filme, além dos reservados a Malek, estão sem sombra de dúvidas, focados nas interações do casal que passam por cima de barreiras pessoais e sociais para preservarem suas conexões e laços sinceros. “Bohemian Rhapsody” é cativante, funcionando como homenagem reverenciosa, saudosista e privilegiando um olhar sobre o Queen e Freddie Mercury impregnado pela forma como todo fã tende a conceber e enxergar seus ídolos: sob a ótica de uma dignidade heroica, de uma relação com a vida e a realidade sublimes, sobressalente às imperfeições humanas e os duros dilemas do mundo real.
Por: Ábine Fernando Silva
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