Direção: Nadine Labaki
Roteiro: Nadine Labaki, Jihad Hojaily, Michelle Keserwany, Georges Khabbaz, Khaled Mouzanar
Elenco Principal: Zain Al Rafeea (Zain), Yordanos Shiferaw (Rain), Boluwatife Treasure Bankole (Yonas), Alaa Chouchnieh (Aspro), Fadi Kamel Youssef (Selim), Kawthar Al Haddad (Souad).
“Cafarnaum” de Nadine Labaki persegue, através de uma estilística ultrarrealista bastante dramática, uma experiência cinematográfica crua, dura e provocante à medida que desenvolve as peripécias de sobrevivência do pequeno Zain (Zain Al Rafeea), mergulhando com sinceridade nas angústias, misérias e privações dessa sofrida e negligenciada criança, forçada a “arcar” com o ônus do abandono e das arbitrariedades do universo adulto, e impelida a uma espécie de amadurecimento precoce. Por outro lado, o drama social de Labaki é bastante competente em enaltecer a firmeza de caráter e o senso de justiça do garotinho, desconstruindo qualquer determinismo preconceituoso advindo de uma pseudo simetria entre marginalização social e degeneração dos valores e virtudes humanas. A diretora libanesa conta sua história imergindo nesse contexto social de intenso descaso e ausência do Estado, no melhor estilo do cinema verdade, explorando com insistência ambientes insalubres e conglomerados de moradias humildes apinhadas de pessoas em condições de vida precária. Além disso, o filme perpassa, num tom de denúncia, uma série de problemáticas caras à realidade libanesa, mas que se aplica incontestavelmente a outros países pobres, e que vai desde a exploração de mão de obra infantil e abusos de incapazes, ao tráfico de pessoas, drogas, a violência urbana e a imigração ilegal. Grande parte desses temas são abordados a partir da perspectiva de Zain e a direção utiliza uma decupagem, muitas vezes, “colada” à perspectiva do menino, utilizando uma câmera de mão tensa e agitada que segue no encalço do protagonista e que escolhe seus enquadramentos e ângulos conjugando meio físico e personagens, estabelecendo relações bastante expressivas entre os espaços decadentes, condições materiais ínfimas e sofrimentos humanos. A fotografia realista prioriza todos os detalhes dos ambientes sórdidos e, sobretudo, busca evidenciar o próprio Zain, cujo aspecto sujo e descuidado, o semblante quase sempre sofrido e amargurado, é captado por closes impactantes que comunicam toda uma desolação absurda. Até mesmo a sonoplastia acompanha essa pegada naturalista da obra, concentrando-se muito mais em sons ambientes que traduzem um entorno social fervilhante, muito embora, a narrativa recorra, em momentos oportunos, a uma trilha triste e comovente. "Cafarnaum" com seu estilo documental e íntimo tende a consolidar uma espécie de cumplicidade e condescendência do espectador, realmente sensibilizado com a luta pela sobrevivência travada pelo garotinho de doze anos (que aparenta ter bem menos), como se todas as injustiças, violências e até mesmo momentos de fugazes alegrias por ele experimentados, também o fossem pelo público que dificilmente encontra alívio dramático nesse enredo de tragédias anunciadas. O roteiro de “Cafarnaum” possui um comprometimento engajado com o tema do abandono e da exploração infantil sob variados prismas, seja ao retratar a ausência de afetividade e de cuidados dos adultos, seja ao revelar a indiferença das famílias e autoridades governamentais com a saúde e a educação dos jovens, ou ainda quando denúncia o completo descaso social em relação às condições miseráveis que permitem a uma quantidade inaceitável de meninos e meninas perambularem pelas ruas passando fome, exercendo comércio ambulante, e a mercê de violações físicas e sexuais.
Por outro lado, a trama alimenta a ideia de "conduta" virtuosa e irretocável de Zain que mesmo diante de todas as condições adversas encontra espaço para manifestar seu carinho sincero e consideração pela pobre irmãzinha envolvida num casamento arranjado e infame, uma solidariedade leal para com a imigrante ilegal Rahil (Yordanos Shiferaw) cuidando e protegendo seu bebê, além de renunciar de forma convicta a tutela de pais abusivos. Nesse sentido, o roteiro de Labaki entrelaça o arco da imigrante etíope com a triste jornada do garoto, permitindo um desenvolvimento ainda mais profundo de seus atributos de caráter e personalidade, exaltando seus sentimentos humanos e fraternos como fruto da identificação tácita entre os párias sociais que se solidarizam incondicionalmente. Zain prontamente constrói vínculos afetivos com a jovem mãe que mantém jornadas exasperantes de trabalho para sustentar o pequeno filho, cobiçado por Aspro (Alaa Chouchnieh), um sujeito ligado a uma rede de tráfico de pessoas e disposto a convencê-la a entregar o bebê como parte da dívida para aquisição de uma documentação que regularizaria sua situação no Líbano. Nadine Labaki opta por uma montagem discretamente descontínua, revelando certos acontecimentos futuros (inclusive no início do filme) que depois se justificam ao longo da narrativa, alimentando um clima de apreensão e dúvidas em relação ao destino do jovem protagonista, sem prejuízos por outro lado, da apreensão e do entendimento dos acontecimentos por parte do espectador. O trabalho da produção e da direção com os atores é percebido em cada cena primorosamente lapidada para proporcionar efeitos dramáticos tão poderosos e desestabilizadores. O êxito espontâneo e realista que Nadine alcança com seu elenco em “Cafarnaum” lembra sem reservas os esforços e os frutos colhidos por Fernando Meirelles e Kátia Lund em “Cidade de Deus, 2000”, já que a diretora também se propõe a trabalhar aqui com atores não profissionais, atingindo também resultados formidáveis. Destaque para o garoto Zain Al Rafeea que parece ter a vida real automaticamente transposta para as telas (o ator é um refugiado sírio), tamanha naturalidade e sinceridade diante das câmeras, modulando com facilidade reações, sentimentos e gestos, numa interpretação marcante. O drama de “Cafarnaum” ostenta a denúncia social urgente que extrapola as fronteiras do Líbano ao chamar à atenção para o abandono coletivo e institucional das crianças e jovens nos rincões pobres e esquecidos das periferias do capitalismo.
Por: Ábine Fernando Silva