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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Cidade das Sombras (1998)

Direção: Alex Proyas

Roteiro: Alex Proyas, Lem Dobbs e David S. Goyer

Elenco principal: Rufus Sewell, William Hurt, Kiefer Sutherland, Jennifer Connelly, Richard O'Brien, Bruce Spence, Ian Richardson.

Cartaz de "Cidade das Sombras", 1998 de Alex Proyas

Lançado um ano antes do avassalador “The Matrix”, 1999, “Cidade das Sombras” embora seja lembrado como uma trama sci-fi com muitos pontos de intersecção com o trabalho genial das irmãs Wachowski, jamais alcançou os louros da crítica ou caiu nas graças do grande público como a super produção cyber punk da Warner que para alguns, ajudou a ofuscar a existência do filme de Alex Proyas ao longo dos anos seguintes. O injusto “limbo” experimentado por “Cidade das Sombras” talvez encontre alguma razão em suas escolhas dramáticas um tanto genéricas que desvitalizam bastante seu enredo ambicioso e megalômano, além da própria trama em si deixar uma série de pontas soltas. Soma-se a isto, o fracasso de bilheteria que impulsionou ainda mais o anonimato do projeto, cujas premissas criativas, por outro lado, não foram totalmente capazes de “driblar” suas incongruências, deixando aquela sensação recorrente de que alguns de seus elementos poderiam ser mais bem lapidados. Abduzidos por uma raça alienígena em extinção, um contingente significativo de pessoas habita uma cidade sombria (literalmente sem luz do sol) moldada ao bel prazer dos “Estranhos”, seres telepáticos de outra galáxia que utilizam as memórias de homens e mulheres como parte de um estudo para compreender a essência da alma e da individualidade humanas, buscando uma forma de barrarem sua extinção iminente. Os extraterrestres contam com a ajuda do Dr. Daniel P. Schreber (Kiefer Sutherland), um psiquiatra traidor de sua própria raça que os auxilia no armazenamento e na troca constante das memórias e funções sociais dos habitantes do lugar que nada suspeitam de suas condições de cobaias. Algo dá errado quando John Murdoch (Rufus Sewell) desperta num quarto de hotel e encontra ao lado uma prostituta assassinada. Sem conseguir se lembrar de nada, confuso e desorientado, o sujeito foge da cena do crime, tentando entender o que aconteceu e buscando respostas acerca de sua identidade, enquanto a polícia, liderada pelo inspetor Frank Bumstead (William Hurt) segue no seu encalço, assim como as criaturas das sombras que pretendem eliminá-lo ao descobrirem a ameaça de sua excepcionalidade. O roteiro calibrado a três mãos, incluindo o próprio diretor, além de Lem Dobbs e David S. Goyer contextualiza passo a passo o argumento que determina a razão de ser do enredo enquanto articula a trama noir que envolve a busca por respostas do personagem de Rufus Sewell, principal suspeito de uma série de assassinatos contra prostitutas, cuja memória e identidade foram misteriosamente perdidas. Desta forma, a trama acompanha a fuga de um herói perturbado que parte numa jornada em busca de sua própria essência, memória e personalidade, descobrindo por sua vez, o cruel destino de seus semelhantes, vítimas das engrenagens de uma realidade manipulada por forças alienígenas. Ora, Murdoch também precisa sobreviver à perseguição implacável dos “Estranhos”, encabeçada por Mr. Hand (Richard O'Brien) e Mr. Hall (Bruce Spence), criaturas em vias de extinção, dotados de um poder coletivo telepático e da habilidade em moldar o espaço físico e a matéria de acordo com suas vontades.

Kiefer Sutherland e Rufus Sewell contracenam no sci-fi de Proyas

O que estes sádicos seres não contavam era com a “excepcionalidade” inadvertida do protagonista, cujo despertar da força, capacita-o a salvar os humanos, como uma espécie de predestinado, assim como o herói de “The Matrix”, reeditando a lógica messiânica da aleatoriedade da escolha, dos desígnios divinos e da natureza insuspeita do dom. Para aproveitar outra semelhança direta com a obra das Wachowski, o tema da realidade como “simulacro”, regida por forças maiores e que tornam as pessoas escravas e alienadas num ciclo vicioso e degradante, “Cidade das Sombras” opera na mesma lógica, porém ao contrário da saga de Neo, apresenta sua desgraça como advinda de forças extraterrenas. Outro tema fundamental do filme é a importância da “memória”, uma vez que as experiências macabras perpetradas pelos alienígenas notívagos e pelo Dr. Schreber tem como foco a observação da capacidade adaptativa e da construção de uma individualidade singular a partir das experiências racionais e emocionais acumuladas na mente pelos seres humanos ao longo do tempo, habilidades que poderiam fornecer alguma resposta ou antídoto a derrocada lenta dos Estranhos. No entanto, o motivo que dá vazão ao conflito principal da trama não atinge a concisão e a clareza exigidas pelo problema colocado, soando um tanto vago os principais objetivos do projeto dos vilões, mais coerente no que diz respeito ao seu viés sádico, abusivo e manipulador. Além do mais, o roteiro opta por um didatismo simplificador, mais ou menos na segunda metade da história, recorrendo a diálogos fracos e expositivos que ainda assim falham numa explicação satisfatória de como os alienígenas se aproveitariam de suas cobaias para interromper a morte certa de sua raça. O curioso é que o aspecto de organismo coletivo e a conexão telepática entre estas criaturas parecem estar por trás de sua degeneração, ao contrário da suposta qualidade humana calcada na individualidade, elemento que a tornaria mais forte e adaptável. Alex Proyas conduz o suspense com sobriedade, perdendo um pouco a mão na direção dos atores e na evolução dramática de cenas importantes que não produzem um efeito convincente, principalmente pelo que entrega a performance do próprio Rufus Sewell, superficial e pouco expressivo. A decupagem versátil aproveita a riqueza do design de produção para gerar clima e imersão, além da montagem dinâmica e fluída não prejudicar a lógica dos eventos. A câmera eloquente explora cenários góticos e sombrios provavelmente inspirados em grandes metrópoles das primeiras décadas do século XX e que encontra paralelo na ambientação de outras ficções como “The Matrix”, Gotham City ou mesmo a cidade de “Metrópoles”, 1927, de Fritz Lang. A atmosfera sombria e decadente das tramas noir é bem reproduzida na fotografia do polonês Dariusz Wolski que retrata a sordidez dos espaços fumacentos e mal iluminados das construções, ruas e becos com incríveis efeitos de luz e sombra que alinhados às mutações morfológicas da arquitetura, através de efeitos especiais de encher os olhos, geram um espetáculo visual caprichado e estiloso. O Expressionismo Alemão é homenageado no filme de Proyas não só pela estética dos cenários, mas também nos caracteres dos “Estranhos”, seres cujo aspecto físico e figurino remetem ao icônico vampiro “Nosferatu” de F. W. Murnau. Além das interpretações rasas e pouco inspiradas de Rufus Sewell ou Kiefer Sutherland, exceção feita ao seguro e experiente William Hurt ou mesmo a dedicada Jennifer Connelly, “Cidade das Sombras” peca feio no uso da trilha que atrapalha um pouco a experiência imersiva por causa do excesso e da falta de sintonia dramática. Ainda que amargue certo anonimato penoso, o longa de Alex Proyas possui seus nichos e fãs, provando que há sim aspectos artísticos e temáticos relevantes sem sua mensagem dignos de uma revisita complacente de outras gerações sob uma perspectiva mais generosa.


Por: Ábine Fernando Silva

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