Direção: Mel Gibson
Roteiro: Randall Wallace
Elenco principal: Mel Gibson, Patrick McGoohan, Catherine McCormack, Sophie Marceau, Angus Macfadyen, Brian Cox, Gerda Stevenson, Peter Hanly, Brendan Gleeson.
Segundo longa dirigido pelo então novato diretor Mel Gibson, o épico “Coração Valente” inspira-se livremente na mítica poética medieval do nobre escocês William Wallace para construir uma narrativa visualmente ambiciosa, cuja dramaticidade opera por meio de eventos intensos e hiperbólicos capazes de mexer com as emoções e os sentimentos do expectador, ao passo que enseja ações violentas realistas e estilizadas. O roteirista Randall Wallace a partir de um poema histórico do século XV desenvolve uma trama que mitifica ainda mais o ilustre personagem escocês, atribuindo-lhe uma importância excepcional que se em relação aos registros históricos carece de verossimilhança, para a proposta hollywoodiana de Gibson acaba “caindo como uma luva”, haja vista todos os clichês que a obra propõe, além do fator imprevisto, mas promissor de produção que lançou o audacioso diretor para o protagonismo diante das câmeras. Por volta do ano 1280 d. C. após a morte de seu legítimo rei, o trono escocês e sua nobreza acabaram submetidos ao domínio do monarca inglês, tirano e pagão Eduardo I (Patrick McGoohan) que para fazer valer sua autoridade, sufocava qualquer tentativa de resistência local, impondo uma violência inconsequente e cruel. É neste contexto que o garoto William Wallace (interpretado posteriormente por Mel Gibson) assistiu perplexo e impotente ao assassinato de algumas famílias camponesas da região, assim como do pai e do irmão, executados numa tentativa de fazer frente aos desmandos do soberano inglês. Criado e educado pelo tio Argyle Wallace (Brian Cox) fora dos domínios britânicos, o civilizado e renovado Wallace retorna à sua terra natal com intuito de viver uma vida tranquila como fazendeiro, casar-se com seu antigo amor de infância Murron MacClannough (Catherine McCormack) e não se envolver com os conflitos políticos que lhe foram tão caros no passado. Como maldição do destino, o protagonista novamente se vê diante dos efeitos humilhantes e devastadores da dominação do carrasco Eduardo I que promulga a imoral “prima nocte” (lei de violação sexual das mulheres escocesas recém-casadas), além de testemunhar tragicamente o assassinato covarde de sua esposa. Sem mais nada a perder, o destemido William Wallace sedento por vingança, reúne em torno de si uma quantidade cada vez maior de escoceses fartos do bárbaro desmando inglês, iniciando um movimento de libertação nacional de proporções territoriais inimagináveis, aliando-se a uma nobreza cujos propósitos e aspirações o levarão a ruína, mas forjando a lenda viva em torno do herói, símbolo da luta contra toda forma de opressão e tirania. O roteiro de “Coração Valente” ao explorar um personagem que desde a infância sentiu na pele as consequências tirânicas da coroa inglesa, não o faz a princípio, imbuído de um projeto político coletivo de resistência, ao contrário, prefere envolve-lo num individualismo indiferente e distante que pode soar um tanto contraditório ao expectador que já no primeiro ato, aguarda um retorno triunfal e comprometido do protagonista contra seus algozes. O texto do filme investe na construção do romance idealizado do pródigo e pacífico herói com a recatada e bela camponesa que o “aguardava”, secundarizando o argumento político do filme, relegado posteriormente ao desejo pessoal de vingança. A impressão forte da mensagem que “Coração Valente” transmite é que Wallace só toma partido da causa coletiva cara ao seu próprio povo à medida que sua amada acaba brutalmente assassinada, sequestrando inclusive a importância da luta histórica dos escoceses em torno da figura de um único homem, excepcional, mártir, cujo coração valente assemelha-se ao de figuras históricas capazes de mudar os rumos da humanidade como Jesus Cristo por exemplo.
Não se ignora a importância da insurreição coletiva e da luta pela liberdade contra a opressão, mas se estrutura a trajetória do herói bem ao gosto das narrativas hollywoodianas padronizadas, conferindo-lhe uma áurea mítica que se intensifica ainda mais com sua morte. Há muita dramaticidade capaz de envolver facilmente o público e isto, Randall Wallace dosa muito bem ao longo do enredo, valorizando momentos narrativos intensos que “cativam”, “sensibilizam”, “chocam” ou “revoltam” sempre numa crescente, dando liga ou fazendo o expectador “torcer”, “vibrar” e “emocionar-se”. A ação que aposta na opulência gráfica também é bem distribuída no decorrer dos acontecimentos, da mesma forma que os sub-arcos mais significativos como do nobre escocês Robert de Bruce (Angus Macfadyen), da princesa Isabel da França e do tirânico Eduardo I possuem suficientes camadas capazes de substanciar a jornada do herói, embora a relação proibida entre o revoltoso escocês e a princesa francesa soe como conveniência romântica, assim como a morte por doença do cruel soberano inglês soa anticlimática e acaba frustrando um pouco as expectativas de um acerto de contas à “altura da dívida”. O catolicismo militante de Mel Gibson também dá o ar de sua graça nesta produção não só através da manifestação evidente desta religião entre os escoceses, mas, sobretudo, por uma série de alusões ou metáforas cristãs relacionadas ao mítico Wallace e encaixadas em momentos especiais da trama. Desta forma, a maldade do monarca inglês tem ligação com sua conduta considerada “pagã”, assim como a “traição” de Robert, o jovem nobre que conquistara o respeito e a confiança do herói, assemelha-se a de Judas Iscariotes e finalmente, o gesto messiânico que aceita resiliente a própria morte tem analogia direta com Jesus Cristo que morre para libertar a humanidade dos pecados. A direção de “Coração Valente” é ostentosa e megalômana na esteira das convenções do gênero, abordando cenários medievais ricos e detalhados por intermédio de planos abertos contemplativos e ângulos de câmera sensíveis ao registro épico da profundidade de campo, fotografias belas e apuradas dos espaços e personagens, inclusive na ação, retratada com muito vigor, violência e realismo. Mel Gibson explora uma brutalidade hiperbólica e choca com imagens fortes, característica esta que marcou o trabalho posterior do cineasta em “Paixão de Cristo”, 2004. O clima de “injustiça” e de “covardia” que impregnam o primeiro ato sofre uma transição oportuna e necessária à medida que a “correlação de forças” entre Inglaterra e Escócia se modifica, ganhando espaço o “revanchismo” e a “vingança”, elementos tão aguardados pelo público e coerente com o espírito da narrativa. Por outro lado, o papel da intrépida liderança escocesa não encontra muito respaldo na performance de Mel Gibson (que não desejava interpretá-lo) que apresenta certa dificuldade para adequar-se ao tom do personagem, principalmente em cenas que lhe exigem maior versatilidade expressiva. É justamente na ação e nas batalhas que o ator consegue “pisar em solo seguro”, o que por sua vez, ofusca suas perceptíveis limitações. Há uma dosagem sóbria entre os elementos dramáticos e o filme flui sem muita percepção de extensão temporal, fruto de um senso de edição fluído e perspicaz. O alcance atmosférico e grandiloquente de “Coração Valente” não se ancora apenas no esmero visual, mas também na excepcional música tema de James Horner que embala a narrativa com precisão, conferindo-lhe identidade cultural e lirismo, mesclando-se à áurea do lendário William Wallace. Apesar de superestimado (faturando cinco estatuetas, incluindo Melhor Filme, Direção e Fotografia), “Coração Valente” carrega a marca do esforço e do ímpeto perfeccionista de seu realizador, merecendo sim o posto de grande épico, o que não significa necessariamente o posto de “grande filme”.
Por: Ábine Fernando Silva
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