Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco principal: Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart, Lihi Kornowski, Scott Speedman, Don McKellar, Welket Bunguê.
Disponível: Mubi/Amazon Prime
Em "Crimes do Futuro" David Cronenberg articula a estética do “body horror”, carregada de seu habitual fascínio mórbido e obsessão naturalista pelo "grotesco", sob o pano de fundo de um futuro distópico que trouxe consigo o perturbador dilema de uma possível evolução da raça humana, fazendo vir à tona indivíduos e grupos crivados de mutações orgânicas bizarras em seus corpos. Ora, é instigante a forma com que o diretor canadense envolve o espectador em seu universo “medonho” e “sombrio”, propondo uma relação gráfica um tanto simbiótica entre elementos do “horror”, da “ficção científica” e do “noir” sem recorrer, não pelo menos a princípio, a elucubrações auto explicativas sobre os eventos, perseguindo muito mais uma perplexidade frente a uma realidade onde as “dores” e as “infecções” foram quase extirpadas da experiência humana e o choque indigesto advindo de uma extrema violência meio amoral e cheia de requintes sobre os corpos. Tudo tende a soar subversivo, estranho e repulsivo não apenas os espetáculos dos artistas performáticos, regados de um sadomasoquismo voluptuoso, mas também a forma como certos personagens se apresentam, interagem e se relacionam. Parece haver um decadentismo sórdido regendo não só os espaços sociais, como também condicionando hábitos, costumes e levando os indivíduos a comportamentos inconsequentes e auto destrutivos. O roteiro de Cronenberg até possui escolhas bastante genéricas quando busca sustentar sua premissa fundamental através da justificativa superficial do controle autoritário governamental sobre os indivíduos biologicamente transformados, ou quando desenvolve o arco do assassinato do garotinho que digere plástico, inserindo o elemento detetivesco envolvendo o próprio protagonista Saul Tenser (Vigo Mortensen) como um colaborador “improvável” da polícia que tenta desarticular a resistência "mutante". Contudo, a conformação estranhamente convidativa daquele universo bizarro, e os comentários sociais que se podem aferir da “encruzilhada” evolutiva mesclada aos novos paradigmas culturais e comportamentais acabam superando a fragilidade meio insossa do enredo, ainda mais porque a intenção meio alegórica e provocativa de algumas ideias do filme por si só já impelem o espectador a confrontar-se com problemáticas bastante abrangentes, entre elas, os novos horizontes de uma arte sadomasoquista que preconiza as expressões vulgares da metamorfose fisiológica, o vazio existencial deixado supostamente por um extremo hedonismo que estaria triunfando sobre a dor, as consequências orgânicas imprevisíveis do consumo exacerbado de processados, além do sarcasmo implacável e questionador direcionado à indústria da estética e à promoção impositiva de determinados padrões de beleza. A provocação reflexiva da narrativa é pungente, embora Cronenberg não seja propenso à explicitações, muito pelo contrário, sua atração “intestina” pelo fisiológico e pelo mórbido ao explorar as possibilidades da natureza do corpo e suas implicações psicológicas e afetivas em “Crimes do Futuro” opera dentro de um estilo já reconhecido do diretor, instigando o público a conceber suas próprias proposições e juízos acerca dos eventos. A pegada voyeur metódica e incisiva da obra tende a estimular reações e sensações mais desconfortáveis, associando “pólos” normalmente opostos como a “dor e o prazer”, “o saudável e o enfermo”, “o grotesco e o belo”, sobretudo, por meio da representação torturante dos corpos na realização dos desejos e impulsos sexuais. Em suma, o diretor recondiciona com bastante tranquilidade e potência suas referências estilísticas anteriores através de uma cinematografia atmosférica, envolvente e provocante, um design de produção surrealista, simbólico e híbrido (dialogando com outros gêneros), uma construção dramática mais performática e um subtexto filosófico e psicológico; no entanto, parece faltar consistência à construção de elementos fundamentais da trama, deixando, no fim das contas, aquele leve “gostinho” de subaproveitamento no resultado final de um projeto com boas ideias.
Nota: (10 / 6,5)
Por: Ábine Fernando Silva
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