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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Cría Cuervos (1976)

Direção: Carlos Saura

Roteiro: Carlos Saura

Elenco principal: Geraldine Chaplin, Ana Torrent, Conchita Pérez, Maite Sanchez, Mónica Randall, Héctor Alterio, Florinda Chico.

Geraldine Chaplin e Ana Torrent contracenam no longa de Carlos Saura

O aforismo irônico e perverso contido no ditado popular espanhol: “cría cuervos y te sacarán los ojos” encerra uma sabedoria cuja substancia metafórica parece ilustrar bem o que representou o fascismo franquista em suas quase quatro décadas de existência. Provavelmente, inspirado nessa aterradora sentença é que Carlos Saura batizou aquela que se tornaria sua obra moderna mais icônica e prestigiada, haja vista todo arranjo estético sensível e engajado em torno de questões culturais e políticas espinhosas e traumáticas para a sociedade espanhola. Menos lúdico e teatral que a alegoria de Glauber, a faceta mais lírica e singela da alegoria de Saura absorve mais claramente as influencias estilísticas da Nouvelle Vague, propondo um cinema que enaltece a “rememoração” sincera e autoindulgente da experiência infantil ao passo em que viabiliza seu conteúdo de caráter psicanalítico e político, uma vez que a protagonista da trama, a meiga e perspicaz garotinha Ana (Ana Torrent), se insurge contra o autoritarismo e a figura opressiva do patriarca e militar franquista Anselmo (Héctor Alterio), absorvendo precocemente não apenas a natureza tóxica da desestabilização conjugal e familiar, mas também partilhando dos desgostos e sofrimentos da mãe. O enredo de “Cría Cuervos” se descortina através das lembranças melancólicas de um período singular da infância de Ana (Geraldine Chaplin) que após testemunhar a perda dolorosa da mãe, acredita tê-la vingado “envenenando” o pai, morto no próprio quarto durante uma relação sexual com a amante. É nesse contexto que a protagonista e suas irmãs Irene (Conchita Pérez) e Maite (Maite Sanchez), agora órfãs, são entregues à tutela da rígida tia Paulina (Mônica Randall), tendo que enfrentar juntas os traumas, as recentes tragédias e a nova condição familiar, encerradas num imenso e decadente casarão assolado pelos “fantasmas” de um passado bastante vívido. O cineasta espanhol tece seu roteiro pondo em evidencia as memórias tristemente líricas de uma mulher que se debruça sobre um dado momento da infância, dando vazão à sua própria perspectiva pregressa enquanto uma criança lúcida que testemunha e reage de forma peculiar a instabilidade conjugal dos pais e suas inevitáveis consequências trágicas que acarretam uma série de mudanças bruscas e dolorosas no interior do lar. Saura funde presente e passado, preservando a autenticidade do viés psicológico da garotinha, cujo processo de luto se manifesta pela contenção da mágoa, pela solidão da perda e por certa inclinação mórbida advinda do trauma que associa a morte da mãe à opressão, a indiferença e a infidelidade do pai. Nesse sentido, a alegoria de “Cría Cuervos” ganha ainda mais dimensão ao propor essa rejeição e ruptura convicta com o franquismo por meio da figura intrépida da personagem de Torrent que se rebela primeiro contra o “patriarca” (a personificação do fascismo espanhol), e depois contra a autoridade da tia, evidenciando durante esse processo, a insensibilidade adulta em relação à vulnerabilidade emocional das órfãs e um profundo desencanto com a vida num contexto espacial asfixiante, claustrofóbico e decadente.

Maite Sanchez, Conchita Pérez e Ana Torrent dançam sob o ritmo da canção; "?Por qué te vas?" de Jeanette

O texto de Carlos Saura para além dessas metáforas e simbolismos relacionados ao cenário sócio-político autoritário da Espanha franquista consegue explorar com acuidade a complexidade dos sentimentos e emoções infantis ao lidar com o luto num regime familiar austero e opressivo, chamando à atenção para a lucidez de Ana em relação aos conflitos do universo adulto, seu senso de justiça aguçado, a negação inconformada da ausência materna e a manifestação de uma subjetividade irônica e vingativa, desconstruindo certo preconceito adulto que tende a desqualificar as capacidades cognitivas e emocionais das crianças frente a certas questões da realidade. Por outro lado, são marcantes aqueles momentos mais poéticos em que um tipo de representação bastante natural e espontâneo do elenco mirim entra em foco, abordando de um lado uma intensa conexão amorosa e meio espiritual entre mãe e filha, e do outro, a natureza mais lúdica, afetiva e sensível da relação entre as irmãs (é cativante a cena em que as meninas dançam sob o ritmo da canção:“?Por qué te vas?”), o que torna a narrativa, sob certo ângulo, menos melancólica, mórbida e sombria. O diretor espanhol, logo de início, evoca o passado apostando na força emotiva das imagens fotográficas e dos retratos de família, equalizando por meio da delicadeza da montagem, do uso da “voz em off” e do lirismo da música, o tom de uma narrativa que se provará intensamente intimista e poética. Ora, o cinema moderno de Saura persegue constantemente uma espécie de “realismo lúdico” que condensa as perspectivas das linhas temporais no fluxo de consciência e abre margem para digressões fantasiosas e oníricas em prol da trama, o que por sua vez, permitem ao espectador vislumbrar o profundo elo afetivo ainda pungente entre mãe e filha, compadecendo-se da desolação fatalista da menina. Nesse sentido, “Cría Cuervos” apresenta um tipo de encenação que equilibra e diversifica seu drama (ora um tanto lúgubre, ora profundamente sentimental e meigo, ora sarcástico) na sutileza naturalista da direção de atores, na manipulação estratégica da trilha e na abordagem sóbria dos espaços decrépitos e frios da mansão. Embora a obra de Saura associe a tragédia particular e pessoal de Ana com a própria tragédia política e social da Espanha fascista, prevalece o horizonte auspicioso do enfrentamento do trauma e da conquista da liberdade ao final do terceiro ato. Talvez a intenção nobre aqui seja mesmo a de alimentar e manter viva, ainda que triste e indigesta, a chama purificadora da “memória”, conservando sob certa distância segura as perniciosas sombras do autoritarismo.


Por: Ábine Fernando Silva

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