Direção: Boots Riley
Roteiro: Boots Riley
Elenco principal: Lakeith Stanfield, Tessa Thompson, Armie Hammer, Steven Yeun, Jermaine Fowler, Terry Crews, Omari Hardwick.
Primeiro filme do rapper e ativista político Boots Riley, “Desculpe te Incomodar”, título em português bastante conveniente para “Sorry To Brother You”, carrega a marca do engajamento militante e da crítica implacável ao capitalismo selvagem e desumano, encarnando uma sátira realista e cruel a uma sociedade sádica, consumista e individualista, cuja mídia perversa se promove ressignificando comercialmente a resistência e espetacularizando a desgraça. Em meio a uma realidade tão hostil e impiedosa com os mais pobres, principalmente com a comunidade negra marginalizada, a narrativa de Riley aposta no humor cínico com viés de tragédia para ridicularizar os poderosos e seus asseclas, refletir sobre a importância da participação coletiva para a conquista de direitos e, sobretudo, chamar a atenção ao jogo eficiente, maquiavélico e sujo do capital em corromper consciências, segregar a luta política e seduzir os desprevinidos com promessas materiais ilusórias. Cassius Green (Lakeith Stanfield) vive na garagem da casa hipotecada do tio Sérgio (Terry Crews) sem muitas perspectivas de futuro e trabalho, até conseguir por meio do amigo Salvador (Jermaine Fowler) um emprego de operador de telemarketing na RegalView. Não obstante, o protagonista convencido da importância em se destacar, descobre seu irônico talento de imitar uma “voz branca”, batendo metas inigualáveis de vendas e ascendendo ao andar de cima, tornando-se assim um gerente ou “Ligador do Poder”. Conforme o jovem promissor obtém sucesso na RegalView, seu relacionamento com a namorada Detroit (Tessa Thompson) se deteriora, assim como o afastamento dos amigos se torna inevitável, ainda mais quando o iludido funcionário padrão decide furar constantemente as greves articuladas pelo militante Squeeze (Steven Yeun). Convicto da importância de seu bem estar material e cada vez mais próximo dos altos escalões do poder, Green se aproxima de Steve Lifit (Armie Hammer), o excêntrico ricaço dono da WorryFree, descobrindo depois os planos perversos do playboy e suas experiências científicas imorais com os trabalhadores, que geram híbridos de homens-cavalos. Desesperado, Cash então decide romper de vez com aquele mundo, denunciar os crimes macabros de Lifit, reconquistar os amigos e juntar forças com os “Olhos Esquerdos” para desmantelar um império econômico sádico e desumano. O roteiro de “Desculpe te Incomodar” traz a marca inconfundível da militância de seu realizador, preocupado em abordar questões sérias do capitalismo estadunidense e de sua moralidade utilitária, competitiva e traiçoeira, ofuscada dos discursos cosméticos de ideólogos neoliberais e admiradores ferrenhos do pretenso modelo de progresso americano. O conhecimento de causa de Boots Riley permeia a tessitura da trama e a trajetória tortuosa do jovem Cassius, cuja necessidade elementar de sobrevivência e realização pessoal acaba canalizada pelo próprio sistema que o coloca momentaneamente do lado oposto de sua classe e povo. A opção mais recorrente pela ridicularização das figuras de poder e das instituições capitalistas, entre elas a mídia televisiva sádica, sensacionalista e carniceira facilitam a identificação das contradições e das oposições sociais, muito bem delineadas no filme, mas que encontra na indecisão, no conflito e no dilema do protagonista, o elemento complexo, trágico e realista, abordado por meio de um humor cáustico e provocativo.
Desta forma, a descoberta do talento inato da “voz branca” (crítica explícita ao privilégio socioeconômico dos brancos), seguida da transformação em “Ligador do Poder” e da ascensão financeira ilustra o trajeto da guinada ao topo da pirâmide, alcançado por um sujeito seduzido pelas promessas de bem estar do capital que em sua ética instrumental, desumana e sem limites, recompensa o “talento” e os esforços do rapaz, transformando-o em um “equisapien”, mais uma das experiências bizarras e perversas de Steve Lifit para aumentar a produtividade e os lucros, não bastasse à exploração escravista refletida nos dormitórios para funcionários oferecidos por sua empresa. Uma espécie de realidade absurda e dinâmica surrealista rege o universo do longa, não só por despejar uma série de críticas às formas como o capitalismo se reproduz e a sociedade sob seu domínio se comporta, mas também pela natureza caricata, chocante e banal deste tipo de reprodução e comportamento. Neste sentido, o caráter instrutivo e meio pedagógico da narrativa em reforçar as crueldades da luta pela sobrevivência em forma de sátira, explorando também o importante impacto dos coletivos de resistência “Olhos Esquerdos” e as greves do sindicalista Squeeze revela uma arte engajada e politizada em seu discurso contra hegemônico, às vezes, simplória e taxativa em alguns aspectos (a naturalidade com que os funcionários da RegalViewl decidem paralisar e o anúncio indecente na TV estimulando à adesão aos dormitórios empresariais da WorryFree), outras vezes, recorrendo à uma criatividade expositiva inteligente como a “voz branca” garantidora do êxito individual, a demonstração da tática repugnante do mercado via TV que transforma os símbolos de revolução e rebeldia em gestos esvaziados e consumo ou a sacada fabulosa dos homens-cavalos, usada como plot twist que redimensiona de vez a decisão e o destino ironicamente trágico do herói. O protagonismo e o desenvolvimento dos personagens de Lakeith Stanfield e Tessa Thompson deixa pouco espaço para o aprofundamento de outras figuras relevantes e expressivas da trama como Squeeze, Salvador e o caricato vilão Steven Lift, nada que atrapalhe ou comprometa a história. A direção de Boots Riley absorve com propriedade a atmosfera urbana pobre e decadente de Oakland, cujo cenário dos guetos e das ruas tomadas pela juventude negra sem trabalho e perspectivas justificam a própria condição do protagonista. Há desde o início do filme uma preocupação em abordar o aspecto cômico e ao mesmo tempo desolador e trágico das condições sociais, articulando imaginação, realidade e ficção científica, provocando o riso e chocando através de uma cinematografia predominantemente sombria, com muitas cenas em espaços pouco iluminados e noturnos, sendo comum o uso de uma paleta de cores frias (o andar de baixo da RegalViwel destoa do andar de cima por exemplo, mais iluminado e claro). Ressalta-se a dramaticidade hilária e caricatural de algumas interpretações repletas de diálogos ácidos e referenciais, com uma câmera atenta aos exageros e escrachos cênicos que embora depreciativos e debochados, alertam para a gravidade, a desgraça ou o drama daquela realidade. Além disso, não se aproveita a trilha como recurso dramático relevante, ainda que a canção tema “OYAHYTT” do grupo “The Coup” (do próprio Boots Riley) dê o ar da graça em alguns momentos bem específicos. “Desculpe te Incomodar” desmistifica de forma hilária o sonho capitalista americano, utilizando o elemento tragicômico de sua mensagem consciente e politizada para incomodar seriamente a lógica neoliberal e despertar as massas.
Por: Ábine Fernando Silva