Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee, Kevin Willmott, Paul De Meo, Danny Bilson
Elenco principal: Delroy Lindo (Paul), Jonathan Majors (David), Clarke Peters (Otis), Norm Lewis (Eddie), Isiah Whitlock Jr. (Melvin), Chadwick Boseman (Stormin' Norman), Jean Reno (Desroche)
“Destacamento Blood”, a co-produção Netflix e Spike Lee constitui mais um projeto militante e estrategicamente antenado com as questões político-sociais contemporâneas, marca registrada da cinematografia incitante e engajada do diretor americano. O enredo do filme focado na jornada de regresso de quatro afro-americanos veteranos de guerra ao antigo palco do vergonhoso e trágico conflito armado do Vietnã para a recuperação dos restos mortais de um ex-companheiro, assim como de uma milionária maleta recheada de barras de ouro (cuja existência se explica pelo financiamento do governo de Washington à contrarrevolução) acaba evidenciando trajetórias, suscitando calorosas discordâncias, revelando feridas, traumas pessoais e coletivos, numa amálgama de reflexões críticas implacáveis ao Estado americano, sua política falaciosa sobre direitos, igualdade social e liberdades democráticas, tudo isso sem perder do horizonte a dimensão individual, ambígua e conflitante de seus personagens que dão a tônica a uma jornada estreitamente relacionada com o tema da “reparação histórica”. O roteiro dinâmico permeado de alusões, fotos e filmagens colocando em evidência lideranças negras icônicas, assim como a própria guerra perpetrada pelos Estados Unidos em solo vietnamita adota o tom didático antibelicista e antirracista, atribuindo, por sua vez, impacto simbólico e profusão à trajetória dos quatro “bloods” e David, personagens indubitavelmente marcados pelas contradições, horrores e irracionalidades da guerra e pelo racismo institucional e hipócrita que oprimia e marginalizava a comunidade negra dentro de sua própria nação. A trama acompanha a jornada de Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e do jovem David (Jonathan Majors) explorando o entrosamento espontâneo, afetivo e cômico dos carismáticos personagens, suas dissonantes personalidades e visão de mundo, num fluxo narrativo que vai progressivamente apresentando cada um deles, discordantes em relação a qual destino oferecer a vultosa riqueza reencontrada, mas unânimes na visão político-ideológico de resistência ao racismo e às injustiças contra o povo afro-americano, influência intelectual direta e consciente de Norman Earl (Chadwick Boseman), ex-líder do “destacamento blood” e inspiração humana que une o grupo mesmo após quatro décadas de caminhos distintos. Há um tratamento um tanto ambíguo em relação à função do “ouro”, um dos elementos motivadores do retorno dos amigos ao Vietnã (além da intenção de proporcionar um enterro digno a Norman, deixado para trás), uma vez que a possibilidade de aquisição de tamanha riqueza significaria um ponto de inflexão e virada radical para a vida dos antigos combatentes e seus familiares. Se por um lado tal regresso ao país asiático representa uma espécie de dívida moral e questão de honra à memória do ex-líder blood, por outro, a preocupação com o enriquecimento e o fim das privações financeiras levanta dúvidas importantes acerca da função promíscua do dinheiro e do seu poder de corromper, de contradizer consciências e estimular ganâncias e individualismos (aspecto que se relaciona com os interesses capitalistas do governo estadunidense, expresso pela filosofia de Trump, lembrada pelo personagem Desroche, interpretado por Jean Reno). A preocupação em abordar situações sociais de conflito ideológico, étnico e moral chega ser um pouco insistente e taxativo em alguns momentos, evidenciando alguma superficialidade na maneira de representá-las, mesmo em se tratando do personagem vivido por Delroy Lindo, sujeito amargurado e cheio de contradições gritantes (a cena em que o vendedor de frangos e Paul se estranham soa exagerada, da mesma forma que a provocação de Seppo dirigida a David é estereotipada e gratuita, mesmo sendo justificada mais adiante). O roteiro ainda conta com alguns deslizes que embora não comprometam o fio narrativo, incomodam pela casualidade inusitada e certa incoerência sequencial (a forma como David encontra a primeira barra de ouro ou quando Otis desfere uma pancada em Paul para contê-lo e em seguida, os amigos deixam a floresta em fila como se nada tivesse acontecido). Escorregões a parte, “Destacamento Blood” se debruça sobre o lema da cobrança de uma “dívida histórica”, mesmo quando equivocadamente interpretada pelas conveniências do frustrado Paul, ou por nossas precipitadas expectativas, supondo que os personagens franceses integrantes de uma ONG que desativa minas terrestres estariam interessados no ouro por motivos pessoais (fato ambíguo que o roteiro se encarrega de elucidar ao final). De fato, toda soma milionária tem um destino: amenizar, compensar e reparar de alguma forma parte do sofrimento, das injustiças e da dor levada até as últimas consequências pela ambição capitalista dos Estados Unidos, a guerra e o racismo. O caráter de obra cujo posicionamento político é insistentemente afirmado impregna a atmosfera do filme, seus momentos dramáticos e personagens, justificando inclusive a visão direitista e conservadora de Paul, espécie de anti-herói protagonista, xenófobo, ganancioso e eleitor de Donald Trump com seu bonezinho ufanista (a culpa pela morte acidental de Norman e sua grande referência de vida, explicaria, talvez, muitas de suas contradições pessoais e políticas).
O elenco experiente e desenvolto de “Destacamento Blood” (pelo menos os protagonistas) é sem sombra de dúvidas, um dos seus grandes atrativos e Delroy Lindo transmite a complexidade de seu personagem com tamanha naturalidade e carisma que suas oscilações de humor, caráter duvidoso e escrotice não comprometem nossa empatia com ele (dificulta às vezes). Norman Lewis tem participação discreta, mas marcante como o conformado e idealista Eddie, com suas pernas tortas, andar desengonçado e intenções solidárias. Isiah Whitlock Jr. Interpreta o expansivo, irreverente e comprometido Melvin, personagem que deseja ajudar a família com a grana advinda do ouro. Clarke Peters transmite bondade, sensibilidade e interesse afetuoso como o médico Otis, viciado em remédios contra a dor, antítese de Paul, comovido com a descoberta da paternidade de décadas, fruto de um relacionamento amoroso com uma ex-prostituta vietnamita durante a guerra. Apesar da participação modesta Chadwick Boseman atribui presença mítica, heroica e idealista a ‘Stormin' Norman, símbolo da resistência político-social afro-americana, elo sentimental e consciente dos bloods. Vale destacar ainda a espontaneidade, carisma e o sentimento agregador que Jonathan Majors empresta ao personagem David, filho renegado de Paul, professor de Estudos Afro-Americanos e que embarca inusitadamente na jornada dos veteranos de guerra com a intenção de ser recompensado pelo pai. A direção de Spike Lee escancara as contradições e os traumas da guerra e do racismo valendo-se de um humor ácido, em tom de denúncia, mas jamais negligenciando a seriedade e relevância destes temas. Sua predileção pelo registro coletivo destacando as interações dos bloods, recorrendo, inclusive, a alguns planos sequências para tal, promove a química dramática dos personagens, sublinhando a diversidade de personalidades que orbitam uma unidade ideológica. Lee em suas digressões ao passado da guerra, inteligentemente utiliza os mesmos personagens mais velhos revivendo alguns eventos da juventude, demonstrando o quanto a vida de cada um deles ainda se mantinha conectada aos acontecimentos e experiências daquele período. Além disso, a mescla de estilos narrativos, introduzindo depoimentos diante da câmera, colagens com trechos de documentários, imagens e filmagens reais (numa montagem fluída, de alinhamento semântico) intensificam o realismo e o tom sério da mensagem do longa. O design de produção versátil que transita com precisão entre o passado e o presente ancora-se em locações e cenários reais, reproduzindo um antes e um agora delimitados e fidedignos, com o apoio estético perspicaz de uma fotografia que diversifica sua textura e tonalidades de acordo com a linha temporal (mais frias e azuladas no passado). Destaque memorável para a trilha sonora de Marvin Gaye embalando algumas cenas do filme, reforçando a atmosfera e comovendo. "Destacamento Blood" ganha dimensão e urgência, haja vista seu relevante diálogo crítico em relação às atuais problemáticas no campo político-social, chamando à atenção para o debate entorno das questões raciais e da “reparação histórica” dos marginalizados e oprimidos para além das fronteiras estadunidenses.
Por: Ábine Fernando Silva
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