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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Dois Dias, Uma Noite (2014)

Direção: Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne

Roteiro: Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne

Elenco principal: Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Olivier Gourmet, Catherine Salée, Pili Groyne, Simon Caudry.

Marion Cotillard vive a operária Sandra no drama realista dos irmãos Dardenne

Análise devastadora e realista sobre a anulação da sensibilidade de classe e o funcionamento das relações de trabalho no Capitalismo contemporâneo, “Dois Dias, Uma Noite” dos irmãos Dardenne articula sua premissa trágica e pessimista por meio de uma volúpia narrativa intensa e direta, apresentando ao expectador o calvário que dá nome ao filme na vida de Sandra (Marion Cotillard), operária mergulhada numa crise depressiva aguda, correndo contra o tempo para tentar manter o emprego após licença médica compulsória. O roteiro dos cineastas belgas se desenvolve a partir da constatação da desgraça familiar iminente, concentrando-se numa jornada intempestiva, dura e pouco alentadora em relação à empatia coletiva e solidária, principalmente quando o que está em jogo é a manutenção da lógica de um sistema que convence sua mão de obra da importância do valor meritocrático, recompensando os “mais capazes”, punindo os “mais frágeis” e escamoteando por meio do individualismo egoísta e da recompensa financeira, a intenção nefasta e desumana do lucro. Além disso, sob o pano de fundo da corrida insana da protagonista para garantir a própria sobrevivência e dignidade, o roteiro ainda aprofunda o estudo da personagem, apresentando uma mulher no esgotamento de suas capacidades mentais e físicas, tomada por uma depressão letárgica, completamente dopada pelos remédios e que encontra algum alento, graças, sobretudo, ao apoio paciente e incondicional do marido Manu (Fabrizio Rongione) e da amiga de trabalho Juliette (Catherine Salée). A odisseia da sofrida operária é marcada por incertezas e fugazes esperanças, uma vez que o único recurso que lhe sobra, num prazo bem curto de tempo (um fim de semana praticamente) é procurar seus colegas de profissão em suas residências e apelar para o senso solidário e humano para que desistam do bônus em dinheiro que lhe custaria o posto de trabalho. O gatilho desesperador que impulsiona as ações da personagem de Marion Cotillard se justifica na falta de horizontes de uma realidade social cada vez mais excludente, escassa de demanda de trabalho, vulnerável em direitos, extremamente competitiva e individualista, tornando a existência de muitos trabalhadores inglória e humilhante, mas estimulando o lado mais podre e mesquinho do sistema de recompensas capitalista. À medida que as razões apresentadas pelos felizardos ao bônus da fábrica vão sendo conhecidas pelo expectador, algumas até aparentemente plausíveis, evidencia-se o caráter mais grotesco, desumano e covarde alimentado pelo dinheiro que corrompe consciências, coloca iguais como inimigos e faz parecer que o fracasso e a incapacidade produtiva é resultado exclusivamente do indivíduo. Nesta perspectiva, Jean-Marc (Olivier Gourmet), chefe dos operários, insurge como uma espécie de traidor da própria classe e carrasco patronal, intimidando e ameaçando alguns companheiros comovidos com a situação precária de Sandra, inclinados a ajuda-la dentro de uma nova configuração decisória e coletiva que garantiria a permanência da moça na empresa, anulando a compensação financeira. Embora o drama de uma personagem doente e preterida pelo sistema provoque a reflexão pelo choque e a indignação pela ausência de empatia, o texto de “Dois Dias, Uma Noite” alimenta certa ponta de esperança na intensidade de sua visão negativa, no novo fôlego de vida diante da luta pela sobrevivência e na possibilidade mesmo que ínfima da reversão daquela situação imoral (expressa na votação que definiria o destino da protagonista), algo que na vida real, talvez não fosse possível. A direção dos Dardenne constrói uma atmosfera de angústia e desolação acachapante por meio de uma decupagem tensa, ora utilizando enquadramentos em planos médios discretos, ora recorrendo a uma câmera de mão intrusiva e instável que segue os passos da batalhadora ou ainda captando toda decrepitude, emoção e fragilidade de sua condição em closes reveladores, num registro cru e documental (é possível perceber bem o abatimento, as olheiras, a palidez e o cansaço da operária de maneira bem realista). O ritmo da trama acompanha com certa parcimônia o desenrolar das cenas, optando por leves transições do foco na mesma sequencia e pouquíssimos cortes, o que pode de repente transmitir a sensação de extensão temporal, potencializada pela ausência quase completa de trilha, muito embora o filme tenha aproximadamente cerca de noventa minutos. O espectador é exposto a uma experiência vertiginosa, triste e revoltante, cuja profundidade dramática se atinge na performance densa e turbulenta de Marion Cotillard, talvez num dos papéis mais emblemáticos de sua carreira. A força de “Dois Dias, Uma Noite” se traduz em seu impacto narrativo, em sua capacidade de, ao contrário do que ocorre com a operária em sua própria história, criar uma identificação solidária conosco diante de tantos sofrimentos e injustiças. A abordagem crítica implacável dos cineastas belgas em relação a esta espécie de moralidade selvagem e ultraliberal estimulada entre os trabalhadores no Capitalismo contemporâneo e que emerge com força no filme, encontra alento na postura honrada, consciente e resistente da protagonista que não aceita a manipulação de ser reincorporada a fabrica à custa da não renovação do contrato de outro colega. O final alvissareiro dos Dardenne aponta para uma solução coletiva, humana e fraterna, centrada na identificação com a dor e as dificuldades de sobrevivência alheia, assim como no amor sincero daqueles que não desistem do próximo, lembrando que ainda é possível elevar-se a corrupção inescrupulosa do dinheiro.


Por: Ábine Fernando Silva

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