Direção: Charlie Kaufman
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco principal: Jessie Buckley, Jesse Plemons, Toni Collette, David Thewlis, Guy Boyd.
Disponível: Netflix
Elogiado por seus roteiros criativos e originais, Charlie Kaufman fez fama em Hollywood ao lado de artistas de forte veia autoral como Spike Jonze e Michel Gondry, ajudando a moldar narrativas belamente intrigantes, repletas de questões existenciais, humanas e filosóficas. Em “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, adaptação do romance homônimo do canadense Iain Reid e produção Netflix, Kaufman encabeça seu terceiro trabalho na direção, contando com uma liberdade de criação e experimentação notórias, o que sugere não só a confiança e a aposta do serviço de streming no currículo invejável do diretor (pelo menos como roteirista), como também uma necessidade cada vez maior da empresa em diversificar e tentar elevar a qualidade artística de seu catálogo. O enredo do filme acompanha Lucy (Jessie Buckley) que aceita viajar de carro com o novo namorado Jake (Jesse Plemons) para conhecer os sogros, muito embora manifeste o desejo de romper a relação com o rapaz. Durante o trajeto, o expectador se aproxima um pouco da personalidade confusa, melancólica e instável da jovem, assim como observa a delicadeza paciente, a erudição e a simplicidade do rapaz. Cada vez mais insegura e ansiosa Lucy constantemente verbaliza sua intenção de voltar para casa e ao chegarem à residência dos pais de Jake (Toni Collette e David Thewlis), uma série de eventos estranhos, situações constrangedoras e delírios passam a tomar conta das impressões da moça. Completamente aturdida, a protagonista convence o namorado da urgência em retornar e mais eventos estranhos se misturam àquela realidade, levando o personagem de Plemons a desviar o caminho rumo a uma sorveteria e depois à escola que frequentou durante a adolescência. Já no local, o mundo de Lucy e Jake sofre a interferência direta de um terceiro personagem, Janitor (Guy Board), um velho zelador do colégio, cuja existência na trama parece se confundir de maneira quase insuspeita à história do casal. O roteiro de Kaufaman busca funcionar num movimento de “desconstrução” intencional da sua própria trama, uma vez que a subversão do conteúdo narrado se processa, não sem antes, manipular o expectador que tenta “adivinhar” os destinos de Lucy e Jake, construir uma ideia a respeito do caráter e da personalidade de ambos enquanto reflete sobre uma série de ideias filosóficas, existenciais e artísticas que brotam de diálogos densos e digressivos. Ora, uma das maiores dificuldades do público talvez seja encontrar uma lógica narrativa convencional de imediato, já que a trama prefere muito mais suscitar o desconforto, desestabilizar e provocar com suas reflexões e metáforas do que oferecer um desdobramento previsível e coerente para os conflitos e dramas apresentados. Esta escolha artística mais experimental pode não ser tão palatável para boa parte da plateia, atraída para uma espécie de história labiríntica, permeada de referências, abstrações pessoais, conceitos e ideias, talvez, muito particulares do diretor. Kaufman propõe um desafio temático e semântico ambiciosos, soando em alguns momentos narcisista e pedante ao fazer sua narrativa percorrer muitas questões sérias e instigantes sem deixar tempo hábil para que se possa processá-las, entre elas, fracassos pessoais, carência afetiva, incomunicabilidade, solidão, não aceitação da velhice, paranoia, depressão, suicídio, etc. além de certas divagações sobre arte e a utilização da metalinguagem do cinema, relacionada à vida dos personagens (há a interferência de um trecho de filme romântico no decorrer da história de Lucy e Jake).
O que o cineasta faz é chamar a atenção para os protagonistas, para seus aspectos psicológicos e seus comportamentos, para logo em seguida, dar vazão ao pensamento e a profundidade reflexiva dos debates, tentando equilibrar, ao meu ver, sem êxito os dois aspectos concomitantemente. Lucy comunica melancolia, depressão e certa tendência suicida, pensando e sentindo o contrário do que verbaliza, a voz da consciência expressa à verdade da moça, mergulhada num grande vazio existencial e convicta em romper prematuramente o relacionamento com o recente namorado. Já Jake se apresenta como um cara simples, sensível e erudito, tentando impressionar a companheira com seus conhecimentos, no entanto, fica evidente o desequilíbrio sentimental na relação, muito fria e comedida por parte da parceira. Durante o jantar na casa dos pais do rapaz, muitas revelações impertinentes de sua infância e adolescência vêm à tona, lançando luz sobre que espécie de educação e relação familiar complexa o teria traumatizado e moldado sua personalidade. “Estou Pensando em Acabar com Tudo” envereda-se pela subjetividade e pelo aspecto surrealista que tudo indica, pelo menos numa leitura possível, brota da mente da personagem de Jessie Buckley, dificultando a constatação do que é real ou do que são projeções e delírios. Não obstante, a existência discreta do zelador à margem da superfície do enredo irrompe no terceiro ato a realidade do casal, embaralhando-a de vez, sugerindo a possibilidade dos acontecimentos de Lucy e Jake refletirem ilusões, um passado ou episódios da vida de um velho invisível e solitário, cheio de sonhos frustrados e amores fracassados. A direção do filme constrói uma atmosfera fria e carregada por meio de uma decupagem intimista, intrusa, com muitos planos fechados (a viagem de carro à casa dos pais de Jake consome um bom tempo da história, transmitindo uma sensação incômoda e claustrofóbica). A provocação é insistente e ousada, não sendo incomum a sensação de irritação e cansaço em sequencias que se estendem por tempo considerável, sem insistir na influência da trilha, numa montagem dispendiosa, obediente à logica da lassidão narrativa e da complexidade dos diálogos. A condução sensível que capta os excelentes efeitos dramáticos das cenas e a representação sincera e intensa do elenco produz os grandes momentos de um longa que acaba ganhando contornos expressivos pessoais e herméticos de seu realizador. A paleta de cores frias da fotografia (azul e cinza) reforça o aspecto depressivo e angustiante da trama que se desenvolve em cenários gélidos, tomados pela neve, além de esquisitos e desconfortáveis. Há um clima de suspense iminente estimulado por uma sensação de que algo terrível vai acontecer, mas não acontece, estratégia que Kaufman manipula muito bem, brincando com o espectador, abalando previsões e embaralhando as realidades. Destaque para a interpretação intimista, dissimulada e depressiva de Jessie Buckley na pele de Lucy, a jovem acadêmica cujas reações e ações contradizem seus pensamentos negativos e seu aparente pessimismo sobre a vida. Jesse Plemons transmite tranquilidade e erudição como o pacato Jake, disposto a passar boa impressão para a namorada e cheio de inseguranças emocionais. Toni Collette e David Thewlis tem presença marcante como a Mãe e o Pai de Jake, figuras espontâneas, impertinentes e caricatas, cuja curta participação no filme impressiona pela desenvoltura dramática, traquejo sarcástico e o humor cáustico. “Estou Pensando em Acabar com Tudo” foge às convenções, provoca o expectador manipulando suas expectativas e intensificando o teor de suas reflexões, porém, peca no excesso das exigências metafóricas e num preciosismo hermético muito particular que prejudica a imersão.
Por: Ábine Fernando Silva
Muito bom!
Quero assistir ao filme.