Gremlins (1984)
- Ábine Fernando Silva
- 5 de fev. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 9 de jul. de 2024
Direção: Joe Dante
Roteiro: Chris Columbus
Elenco principal: Hoyt Axton, Zach Galligan, Phoebe Cates, Frances Lee McCain, Corey Feldman, Dick Miller, Polly Holiday, Keye Luke, Glyn Turman.

O filme que inaugurou a saga das criaturinhas mais queridas e endiabradas dos anos 80 não fora idealizado a princípio como uma desventura natalina divertida e cativante. Longe disso, "Gremlins" de Joe Dante deveria acontecer como um terror trash e violento, repleto do exagero gore da época e com uma boa dose de humor cáustico e politicamente incorreto (aspecto até mantido na obra). Bem, reais intenções a parte, o fato é que o roteiro de Chris Columbus concebeu uma trama que apenas “arranha” a casca do que se pretendia originalmente, preferindo muito mais a comédia embusteira, ácida e traquina, permeada dos ensinamentos morais das fábulas ao invés da pegada brutal e mais apelativa de terror que convenhamos, dificultaria a adesão da obra para um público mais amplo. O fato é que “Gremlins” ainda assim consegue articular o espírito descomprometido de aventura “spielberguiana” com elementos macabros e asquerosos de uma estética “cronenberguiana”, preferindo camuflar questões mais sérias e indigestas ligadas aos personagens e despistar o impacto de uma série de ações inconsequentes levada a cabo pelos monstrinhos. As vésperas do Natal, o inventor mal sucedido Rand Peltzer (Hoyt Axton) decide ir a Chinatown comprar um presente “diferente” para seu jovem filho Billy Peltzer (Zach Galligan). É no antiquário do Sr. Wing (Keye Luke) que o bem intencionado pai adquiri um “Mogwai”, bem a contragosto do ancião chinês que não percebe que o neto acaba vendendo o exótico bichinho. Antes que o freguês parta, o garoto o alerta sobre as três regras cruciais para a segurança dos que lidam com aquela excepcional espécie: “jamais expô-lo a luz forte”, “não molhá-lo sob hipótese alguma” e “não alimentá-lo depois da meia-noite”. Billy ao ganhar do pai o inusitado e meigo presente e batiza-lo de “Gizmo”, embora seja categoricamente alertado sobre a importância em não “quebrar as regras” de zelo, acaba automaticamente falhando com o compromisso, trazendo, assim, consequências catastróficas para Kingston Falls, convertida num verdadeiro pandemônio. Isto porque, a partir do bonzinho Gizmo (molhado e depois alimentando no horário indevido), várias outras criaturas perversas e incontroláveis ganham vida, transformando a véspera de Natal da pacata comunidade num bizarro pesadelo. O roteiro de Chris Columbus investe numa fantasia nonsense, e ingênua que não se propõe a explicar a origem da raça “Mogwai” (sabe-se que foi trazido da China) e nem mesmo tornar a existência de tal fenômeno um aspecto que intrigue ou perturbe os personagens que acabam tendo um contato mais direto com as criaturas (apenas manifestam curiosidade, afeto, repulsa, ódio ou revolta). Exceção feita talvez ao professor Roy (Glyn Turman) com seu interesse científico em realizar testes laboratoriais para entender um pouco mais sobre os “Mogwais”. A sabedoria oriental contida na mensagem do equilíbrio primordial entre natureza e seres humanos (evidente no final do filme) expressa pelo grau de consciência, comprometimento ético e responsabilidade transforma o longa de Joe Dante num teste moral que dá errado, o que reforça por sua vez o caráter punitivo das desgraças e do caos promovidos pelos insanos monstrengos, ressaltando a metáfora de uma espécie de vingança das forças da natureza que cedo ou tarde cobra sua conta.

Aliás, o surgimento destes seres perversos e destruidores que reproduzem muito do comportamento impulsivo, malicioso e cheio de vícios da própria humanidade, funciona como um espelhamento exagerado, que amargamente reflete o lado mais grotesco e horrendo dos comportamentos sociais. Em se tratando da figura de “Gizmo” e sua vinculação com a cultura chinesa, impossível não estabelecer uma analogia entre o simpático ser e o símbolo “Ying/Yang” do Taoísmo, já que os desdobramentos dos acontecimentos da trama ratificam a dualidade e a oposição contida numa mesma essência, ou seja, a coexistência do bem e do mal são condições inerentes à vida de um “Mogwai” cuja existência os homens devem velar. O texto de Columbus ainda explora a personalidade de bom moço descuidado do protagonista e seu envolvimento sentimental com a colega de trabalho Kate Beringer (Phoebe Cates), assim como de alguns tipos sociais da cidade que também ganham notoriedade ao serem afetados pela balbúrdia anárquica dos Gremlins como é o caso de Ruby Deagle (Polly Holiday), a megera rabugenta e gananciosa, Murry Futterman (Dick Miller), o vizinho invocado e paranoico ou Pete (Corey Feldman), o garotinho curioso e amigo de Billy. Inicialmente, o espírito otimista do Natal que sugere um tom propositivo, alegre e fraterno para o enredo cede espaço para o desespero e o caos à medida que o personagem de Zach Galligan percebe que a situação com os monstros fugiu do controle, sendo necessário encontrar uma forma de destruí-los antes que Kingston Falls venha a baixo. Vale ressaltar que o nome “Gremlins” aparece no filme por intermédio de Murry, o veterano de guerra, ufanista e ranzinza que acredita que os problemas ou panes de funcionamento em veículos ou aparelhos domésticos eram frutos das interferências de seres extraordinários que agem no interior destes produtos, sobretudo se forem de fabricação estrangeira (o que reforça a paranoia da Guerra Fria). A direção de Dante constrói uma atmosfera comunitária e de isolamento em Kingston Falls muito propícia para a ameaça que se anuncia, circunscrevendo alguns dos espaços que serão devastados pela horda de monstros, embalados pela canção tema inesquecível “The Gremlin Rag” de Jerry Goldsmith (impossível não associar as criaturas àquela música infernal). Embora a narrativa flerte com o terror trash, seja quando se interessa pelo aspecto grotesco da fisicalidade dos seres que se metamorfoseiam rompendo casulos nojentos e melequentos (no estilo Alien), seja pela destruição privada e pública dos ambientes ou mesmo pelas mortes, sempre discretas e sem apelo gráfico, o humor cáustico e indigesto toma as rédeas da aventura, garantindo a diversão e as boas risadas. O aspecto artesanal dos efeitos especiais com marionetes, maquetes, bonecos mecânicos e animação em stop motion , às vezes podem soar artificiais, deixando transparecer certas falhas técnicas, nada que comprometa o envolvimento do espectador. Além do mais, a decupagem segura e precisa alinhada a uma montagem eficiente acabam “driblando” as imperfeições e oferecendo um excelente resultado plástico e visual. No fim das contas, o mocinho simpático e desastrado interpretado Zach Galligan e a jovem realista e esforçada vivida por Phoebe Cates conseguem libertar a cidade natal da barbárie alucinante dos Gremlins, contagiados pelo seu inoportuno “líder” de moicano. A fábula fantástica de "terror" sarcástico se encerra com a lição de moral aprendida e algumas inconsistências de enredo carinhosamente ignoradas em nome da nostalgia.
Por: Ábine Fernando Silva
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