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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Harakiri (1962)/Impressões

Atualizado: 18 de jul. de 2023

Direção: Masaki Kobayashi

Roteiro: Shinobu Hashimoto

Elenco principal: Tatsuya Nakadai, Akira Ishihama, Rentarō Mikuni, Shima Iwashita, Tetsuro Tamba, Masao Mishima.

Tatsuya Nakadai (ao centro) interpreta o mestre espadachim Hanshirô Tsugumo em "Harakiri" de 1962

Uma das grandes obras primas do cinema japonês, “Harakiri” (1962) de Masaki Kobayashi se insere na tradição dos “jidaigeki” (dramas de época) e traz para o cerne da sua representação artística uma profunda reflexão questionadora acerca do verdadeiro valor da honra samurai, o que em certa medida, acaba afastando, pela natureza universal do conflito engendrado, quaisquer sombras de elementos culturais mais restritivos, comum nos filmes nipônicos e prejudiciais à imersão do espectador ocidental. Kobayashi ancorado pelo roteiro impecável de Shinobu Hashimoto propõe um cinema formalista e virtuoso, bastante consciente da força de sua própria tradição (inclusive do kabuki) e que encontra num drama histórico trágico e comovente, o subterfúgio ideal para a articulação de uma crítica social e moral poderosas, cujos desdobramentos ensejam a ação catártica e o desfecho apoteótico levado a cabo pelo renegado espadachim Hanshirô Tsugumo (Tatsuya Nakadai). O drama do diretor japonês se debruça sobre o fenômeno idealizado e fatalista do “seppuku” (suicídio cerimonial realizado com uma lâmina) interessado em sua dimensão ambígua e controversa justamente num contexto político de pacificação interna promovida pelo Xogunato (período Edo) que ao manter e beneficiar determinadas casas senhorias acabou lançando outras tantas na miséria e na desonra, desencadeando um desemprego expressivo para um grande contingente da classe guerreira. O estilo atmosférico e meticuloso do longa japonês, traduzido pela fotografia em preto e branco apurada, pela decupagem calculada e discreta (planos e ângulos de câmera extáticos e sugestivos) e pelo uso pontual da trilha instrumental folclórica fomentam toda uma encenação dramática extremamente minuciosa e solene que ressalta a “etiqueta, a “convenção protocolar” e a “conduta disciplinada” das relações sociais no interior da casta samurai, seja para evidenciar a legitimidade e a distinção dos dignitários do código “bushido”, seja para na intencionalidade sarcástica da vingança de Tsugumo contradizer, rebaixar e “descascar” todo aquele “verniz” arrogante de superioridade do Clã Iyi. Ora, esse contexto social de miséria dos “ronins” (samurais sem senhores) acaba colocando em “xeque” o pretenso ideal elevado dos espadachins e denunciando, especialmente, o sentimento elitista e a crueldade de certas casas protegidas pelo Xogum. É por essa razão que a tragédia de Motome Chijiiwa (Akira Ishihama), menosprezado pelos mestres do Clã Iyi e covardemente acossado a cometer o seppuku com a catana de bambu, acaba não sendo em vão pelo ímpeto destemido do sogro, profundamente desencantado com os rumos daquela sociedade e com a hipocrisia e a desumanidade dos líderes de uma casa abastada e tradicionalmente respeitada. A composição narrada em “flashbacks” pelos personagens (a morte infame do jovem Chijiiwa, a dura vida pregressa de Tsugumo, a derrota humilhante dos três mestres espadachins), acontece através de um tipo de representação que privilegia o gesto solene, a disposição sentimental meio teatralizada das relações, a intensidade dramática dos eventos e seus impressionantes desdobramentos. Além disso, todo esse movimento cíclico e metódico da trama que repete a intenção de seppuku, agora na figura do personagem de Nakadai, parece estar intimamente ligado a uma espécie de concepção pedagógica e humanizadora da “tragédia clássica” que o próprio Kobayashi atribui a sua função “narrativa”, como se o ato exemplar de contar uma história fatídica pudesse ter a força persuasiva necessária para sensibilizar e transformar, revelando a verdadeira honra. O diretor aqui não se interessa pela coreografia voluptuosa da ação e do combate, ao contrário, o foco em “Harakiri” é a encenação realista que descortina as dificuldades da vida cotidiana, a luta pela sobrevivência, a rejeição escancarada às figuras de poder e, sobretudo, o questionamento da legitimidade do bushido dentro daquele contexto. O desafio de Tsugumo ou o ato suicida por excelência culminando na profanação simbólica da armadura vermelha, ganha dimensão nobre e redentora, embora toda a magnitude da empreitada selada pela honra e pela bravura de um único guerreiro termine “abafada” pelo peso da letra da “versão oficial” inescrupulosa e deturpada dos fatos, àquela comumente contada pelos “vencedores”. Masaki Kobayashi em “Harakiri” transcende o gênero, calibrando ao seu elegante rigor estilístico, a crítica social lúcida e implacável.


Por: Ábine Fernando Silva


Nota: (10 / 10)

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