Direção: Noah Baumbach
Roteiro: Noah Baumbach
Elenco principal: Scarlett Johansson, Adam Driver, Laura Dern, Ray Liotta, Azhy Robertson, Alan Alda, Merritt Wever.
Dotado de um enredo substancialmente concebido para a profusão do drama, “História de um Casamento” de Noah Baumbach aposta suas fichas na intensidade performática da dobradinha Adam Driver e Scarlett Johansson articulando uma melancólica trama de sutilezas dispersivas, decepções represadas e rompimentos inevitáveis, ainda que para isto, envolva o doloroso processo de separação (mote da trama) numa tentativa madura de manutenção das aparências, carregada de titubeios emocionais e manifestações afetivas que buscam soar sinceras e genuínas. O jovem casal, Charlie Barber (Adam Driver) e Nicole Barber (Scarlett Johansson) enfrentam uma crise severa no matrimônio que inexoravelmente não os reconciliará e em meio a toda iminência do rompimento definitivo, tentam encontrar o equilíbrio sentimental adequado e a maturidade emocional necessária para preservar o pequeno filho Henry Barber (Azhy Robertson) dos traumáticos efeitos do divórcio. Enquanto o processo de separação não chega às vias de fato, o expectador mergulha na trama por meio da perspectiva narrativa dos dois protagonistas que de forma alternada revelam suas motivações, juízos e incertezas em relação à difícil decisão, evidenciando uma faceta bastante heterodoxa e talvez incomum dos divórcios ao ressaltar a dolorosa desintegração familiar por meio dos pequenos gestos de afeto, cuidados ou ternuras que não mais se sustentam, sufocados numa inevitável condição de estagnação, anulação alheia, egoísmo e traição que impede por sua vez, quaisquer possibilidades de reparação ou conciliação. O roteiro que também é assinado por Baumbach aborda o fim do casamento partindo tanto da perspectiva de Charlie quanto de Nicole, buscando alcançar certa neutralidade de razões, embora em certos momentos haja um movimento pendular que dá ensejo e legitimidade para um ou outro lado. Toda esta difícil ruptura é permeada por situações dramáticas intensas, diálogos e monólogos que possuem uma carga emocional avassaladora, permitindo que os personagens de Scarlett Johansson e Adam Driver comuniquem seus sentimentos e suas dores a princípio de forma contida, numa espécie de tentativa racional e equilibrada para não se expor e num segundo momento, extravasando impiedosamente, ultrapassando os limites de meras verdades não ditas. Os momentos mais eloquentes e intensos de "História de um Casamento” e sua fenomenal veia teatral, guardada as devidas proporções, lembram outros clássicos cinematográficos adaptados dos palcos como “Quem Tem Medo de Virginia Wolf", 1966 de Mike Nikols ou “Um Bonde Chamado Desejo" de 1951 de Elia Kazan principalmente no que diz respeito à agudez dramática e visceral do texto, primorosamente interpretado sob a batuta de uma direção que demonstra controle cênico absoluto. Há uma reflexão pungente acerca da importância da alteridada e da cumplicidade sensível, encorajadora e espontaneamente voluntária para o crescimento e amadurecimento dos casais, aspectos que, caso negligenciados, tendem a ameaçar o equilíbrio amoroso e em se tratando dos Barber, ainda que se vislumbre gestos de carinho e admiração na desgastada relação de ambos, acaba imperando a lógica do não dar o “braço a torcer”, seja pelo egoísmo centralizador e alienado do promissor diretor de teatro, seja pelos ressentimentos irredutíveis da anulada jovem atriz. O conflito de egos e a competitividade implícita, própria da profissão, constituem barreiras intransponíveis para os protagonistas, mesmo que os diálogos mais duros no calor dos acontecimentos não os mencionem.
“História de um Casamento” envereda-se pelos tortuosos caminhos da “judicialização” num processo de separação, trazendo a tona o comportamento e o modus operandi de uma indústria especializada em desintegrações conjugais, cujos artífices de destaque, investem-se ou de um pseudo interesse humano e afetivo no “cliente” ou numa “briga de rua”, para usar uma expressão da advogada em relação ao personagem vivido por Ray Liotta, um vale tudo sujo, oportunista e difamatório em nome do dinheiro e do êxito nos tribunais. Embora o roteiro atribua a estas “hienas” que farejam o divórcio uma espécie de personalidade fake, ardilosa e sorrateira, no que se refere à figura da advogada Nora Fanshaw (Laura Dern) é importante que se “abra um parêntesis”, uma vez que a ambiguidade da personagem, cuja empatia verdadeira pode ser questionada, permite também que se leve em conta seu arcabouço ideológico, sua visão de mundo implacável em relação aos privilégios machistas, além de sua própria história de superação no que se refere a um matrimônio desigual, opressor e abusivo. A intrépida advogada tem legitimidade e razão no tema da desigualdade entre os gêneros e utiliza tais argumentos como combustível para o “incêndio” do divórcio e da defesa dos interesses da cliente Nicole. Aliás, o segundo ato do filme, concentra-se numa espécie de retratação até certo ponto ingênua e sem malícia de Charlie e Nicole para lidar com estes tortuosos trâmites judiciais do fim do casamento e as influencias nocivas e inescrupulosas de seus representantes legais, o que definitivamente destrói a tentativa amigável e pactuada de um acordo razoável para ambos, colocando-os como adversários implacáveis numa batalha que no final das contas, acaba envolvendo inevitavelmente a guarda do confuso garotinho Henry. Tentam-se aproximações e acordos menos beligerantes em nome de um carinho ainda presente, da decência de uma vida que um dia fora compartilhada em comum e, sobretudo de um filho, fruto de um amor que manterá um elo emocional entre os protagonistas por um longo tempo. Noah Baumbach ao mergulhar nos dilemas de um casamento em corrosão, prefere perscrutar os dois lados, tornar-se cúmplice do derradeiro processo, revelando por meio de planos intimistas e invasivos, as atitudes e os comportamentos que culminaram no rompimento. Logo no prólogo do filme, identifica-se a montagem inteligente e fluída, elemento semântico importante da narrativa, pois alternará dois arcos, duas vozes conflituosas que convergirão num fluxo de aproximação e repulsão constantemente, assim como na vida real os processos de divórcios ou separações fomentam sensações amorosas contraditórias e convulsivas entre as pessoas. A direção aproxima os expectadores das dores de Charlie e Nicole por meio de uma câmera atenta aos detalhes sentimentais e comportamentais do casal (apagar uma luz com a pessoa ainda no cômodo), dos cenários e dos objetos (cartas escritas pelo casal), dosando pontualmente uma trilha sonora melancólica em momentos dramáticos estratégicos. Além disso, o clima de algo inacabado, de crise que pode resultar em um desfecho que una novamente os protagonistas persiste em boa parte da trama de Baumbach, embora sempre ocorra algum detalhe ou evento que afaste tal possibilidade. Por se tratar de um filme cujo êxito artístico está associado intimamente ao desempenho engajado do elenco, “História de um Casamento” não faz por menos e desfila uma série de situações dramáticas sensíveis, intensas e que certamente marcará a trajetória individual de Scarlett Johansson, Adam Driver e porque não da coadjuvante Laura Dern indicada a diversos prêmios na categoria, inclusive ao Oscar 2020. De certa forma interpretando um papel que já vive na vida real, Scarlett Johansson alcança momentos grandiosos em tela, demonstrando uma versatilidade de emoções e uma espontaneidade sincera e realista, talvez pouco exigida em seu respeitoso currículo. Adam Driver tem presença forte e a circunspecção para interpretar um sujeito que manipula tudo ao seu redor, embora demore um pouco para que o papel lhe exija um pouco mais. À medida que a narrativa progride e a “ficha” do personagem “cai” em relação aos percalços imprevisíveis da separação, o ator consegue comunicar com verdade, fragilidade e descontrole, até então insuspeitos. Já Laura Dern possui a maturidade e o domínio cênico ideal para interpretar a advogada experiente, imponente e ousada, com seus gestos expansivos, caráter ambíguo e argumentos oportunamente audaciosos (o monólogo sobre o papel da mãe e do pai na criação e educação dos filhos é um dos melhores momentos do filme). A capacidade sutil e criativa em “História de um Casamento” de emocionar o expectador comovido com o drama da separação, só eleva ainda mais a excelência alcançada pelo trabalho de Noah Baumbach que para além do tratamento especial de uma realidade tão humana e universal, pode sugerir para muitos casais, principalmente, o exercício indispensável e pessoal da auto-reflexão.
Por: Ábine Fernando Silva
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