Direção: Kaneto Shindô
Roteiro: Kaneto Shindô
Elenco principal: Nobuko Otowa (mãe), Taiji Tonoyama (pai), Shinji Tanaka (filho mais velho), Masanori Horimoto (filho mais novo).
Concentrado na rotina exasperante do trabalho agrícola de uma família camponesa habitante de uma pequenina ilha no Japão, “Ilha Nua” de Kaneto Shindô se vale de uma estética realista crua e minimalista cujo apelo sensorial lança o espectador numa aproximação confidente do esforço de sobrevivência de um casal batalhador que numa espécie de trabalho de formiguinha ou maldição de "Sísifo" transporta baldes de água, trazidos do outro lado da ilha para abastecer suas plantações cuidadosamente cultivadas no espaço íngreme e árido do local. O enredo do filme toma como tese a banalidade da vida ordinária, do esforço das pessoas simples que travam uma luta diária para cumprir suas obrigações, sustentar-se e criar os filhos amparados por uma disciplina resiliente e uma concentração empenhada no dever. O anonimato da família de agricultores reverbera a condição de que esta história de esforço e dignidade poderia ser identificada com a história de qualquer trabalhador culturalmente inserido na lógica da perpetuação da vida, mas cabe salientar que neste caso, a austeridade poética da narrativa de Kaneto Shindô remete em especial, não só a uma caracterização da auto-imagem que os japoneses fazem de si mesmos como um povo focado e honrado, como também a uma frieza e indiferença de emoções e sentimentos, resultado de experiências sociais dolorosas, principalmente ecoadas dos traumas coletivos da Segunda Guerra. O casal e os dois filhos são abordados através de suas experiências e ações que embora levem em conta suas funções e atribuições familiares distintas, ambas compõe uma unidade ou modelo que garantem a perpetuação tradicional daquela sociedade. As crianças deslocam-se da ilha para escola, situada num subúrbio que funciona como uma antítese do lar, com seu modesto fluxo urbano, comércios e manifestações culturais e neste momento, o filme rompe os silêncios, muitas vezes de trilha sonora ou de vozes, salientando o contraste introspectivo, frio e até brutalizado de um lado, com a proximidade sensível das relações, representadas pela socialização do outro. Aliás, a ausência de diálogos e a constatação muitas vezes apenas de um som ambiente (da natureza especialmente), ao passo que oferecem uma experiência sensitiva morosamente angustiante ao público, dada a intensidade enérgica da labuta, além do alargamento da percepção temporal, sugerem uma conexão tão íntima com o espaço, um pertencimento tão inextricável dos destinos dos personagens à entidade representada pela ilha que beira uma condição escrava e fatalista. É desta forma que o patriarca pune com um tapa no rosto a mulher que sob intenso cansaço deixa cair um dos baldes de água que carrega para irrigar a plantação ou quando indiferente aoluto da companheira, desesperada e aos prantos após o falecimento do filho mais velho, segue suas tarefas agrícolas como se nada tivesse acontecido. O trabalho e a sobrevivência insensibilizam e brutalizam, estando o comprometimento com o dever acima das emoções ou das fraquezas físicas (parece conter aqui uma reflexão aguda sobre determinado aspecto do caráter de um povo, disposto a sacrifícios em nome da honra). As pouquíssimas músicas do filme possuem uma instrumentalidade tipicamente regional e estão harmoniosamente diluídas em cenas específicas e de maior intensidade dramática. Há a predominância de uma composição específica, triste e solene que perpassa o enredo, numa persistência que reforça a incessante batalha do dia a dia.
“Ilha Nua” possui uma proximidade estética e temática visceral com as produções do Cinema Novo brasileiro, principalmente com o filme de Nelson Pereira dos Santos, baseado no romance do Graciliano Ramos “Vidas Secas, 1963”, realizado após o filme de Shindô. A incomunicabilidade humana, fruto da brutalização da existência e a tragédia associada à identidade de um lugar que oprime os personagens são retratados através de conceitos formais muito próximos, embora a narrativa japonesa construa uma relação mais poética e lírica com o local, o que não diminui seu impacto espinhoso sobre a vida. A fotografia realista em preto e branco tem nuances contemplativas, dada a beleza da paisagem natural e o aspecto bucólico da vida simples, mas os sofrimentos, a sobrevivência e a tragédia bagunçam um pouco esta percepção com melancolia e angustia tendo em vista o que se desdobra em tela. Por tratar-se de uma produção que não recorre a falas ou diálogos, “Ilha Nua” exige de seus atores interpretações profundamente desafiadoras, à medida que lhes cobra uma expressividade de gestos, olhares, maneirismos que precisam estar muito bem alinhados com a proposta minimalista do filme e o que se observa ao longo de uma hora e meia são manifestações sinceras de sentimentos humanos e personalidades nas suas mais variadas disposições, sejam de perseverança ou exasperação física e mental associadas aos adultos, além da austeridade e certa frieza das relações, sejam das alegrias espontâneas, pueris e da disciplina apreendida na tenra idade pelos garotos. O filme de Kaneto Shindô comporta o essencialismo de uma cultura e de um povo que aprendeu ao longo das árduas batalhas pela sobrevivência manter-se sóbrio, inabalado com a convicção de seguir em frente. Se tal evidência desta auto-imagem, forjadora de mitos, perdura até os dias atuais, certamente que o cinema japonês tem uma contribuição fundamental nesse processo.
Por: Ábine Fernando Silva
Comments