Direção: Shaka King
Roteiro: Shaka King e Will Berson
Elenco principal: Daniel Kaluuya, Lakeith Stanfield, Jesse Plemons, Dominique Fishback, Martin Sheen.
(Disponível: HBO MAX)
Inspirado em eventos reais que culminaram no assassinato do jovem ativista negro Fred Hampton, principal liderança dos Panteras Negras em Chicago no ano de 1969, o filme de Shaka King chama atenção pela pertinência da mensagem na atual conjuntura política estadunidense, estabelecendo um poderoso paralelismo entre as vicissitudes reacionárias e retrógradas da gestão Trump, marcada, sobretudo, pela recrudescência da violência policial, e a efervescente luta revolucionária e antirracista lá do fim dos anos 60, cujas matizes ideológicas propositivas e radicais “Judas e o Messias Negro” faz questão de ressaltar. Neste sentido, para além do insidioso dilema encarnado por Bill O’Neal (Lakeith Stanfield), personagem verídico, “desgarrado” e “maldito” em relação ao espírito da coletividade militante e engajada do período, o longa de King edifica um verdadeiro palanque para a apoteose simbólica de seu messias que munido de uma retórica fascinante e arrebatadora, fruto da performance enérgica e inspiradora de Daniel Kaluuya, acaba se imbuindo de uma áurea assaz mística e idealizada, o que não chega a comprometer o intento realista da trama, oportunamente contrabalanceado no elo dramático do envolvimento amoroso do jovem militante negro com Deborah Johnson (Dominique Fishback). Após ser detido pela polícia por roubo de automóvel e falsidade ideológica (fingir-se passar por agente federal para cometer alguns delitos) Bill O’Neal acaba “recrutado” pelo detetive do FBI Roy Mitchell (Jesse Plemons) para infiltrar-se no partido dos Panteras Negras em Chicago, Illinois, colhendo informações estratégicas sobre a principal liderança do movimento e as atividades do grupo em troca de um suposto perdão pelos crimes cometidos e certas vantagens materiais. Os Estados Unidos mergulhavam numa intensa crise política e social interna ao final da década de 60 devido ao seu papel no jogo geopolítico da Guerra Fria, à manutenção da dispendiosa e impopular Guerra do Vietnã, assim como as constantes pressões e lutas da comunidade negra pelo reconhecimento dos direitos civis. As forças repressivas do Estado sob o comando de J. Edgar Hoover (Martin Sheen) mostravam-se determinadas a lançar mão de quaisquer recursos e estratagemas possíveis para destruir a resistência revolucionária dos Panteras, considerados como a maior ameaça ao “estilo de vida” e a democracia americana, desta forma, Bill (Judas) e Hampton (Messias) se aproximam, delineando dilemas antagônicos, mas inevitavelmente trágicos. O roteiro assinado pelo próprio diretor em parceria com Will Berson constrói com perspicácia a ambientação da trama, evidenciando já em seus primeiros instantes um compromisso documental e verídico que situa o enredo dentro de um contexto histórico-social mais amplo e turbulento, marcado pela luta dos afro-americanos pelo reconhecimento dos direitos civis, a contra ofensiva violenta do Estado e as atividades políticas do partido dos Panteras Negras em Chicago. A oposição entre O’Neil e Fred simboliza a intencionalidade de um sistema social traiçoeiro e perverso, cujo aparato das forças de inteligência e repressão (praticada pelos “porcos”) tem papel fundamental na cooptação e divisão inescrupulosa dos oprimidos, na garantia da segregação racial e na coerção física e psicológica sistemáticas. King e Berson exploram em seu texto a práxis marxista do partido de Chicago, o trabalho pedagógico e filantrópico na comunidade, o esforço na construção de alianças entre diferentes grupos (gangues) numa perspectiva de união no interior das classes marginalizadas e os inevitáveis embates com a polícia, caracterizada abertamente como o braço armado do sistema, orientada a reprimir, violentar e assassinar a população negra.
O foco numa mensagem política radicalizada e sem concessões a um viés reformista liberal ou a um culturalismo conformado encontra na presença imponente e nos discursos acalorados e hipnóticos de Fred Hampton os momentos mais intensos e empolgantes do longa, o que por um lado adensa a áurea messiânica personificada no aguerrido líder negro e por outro, corresponde a um aceno consciente de King para um ativismo político mais feroz e intrépido, sintonizado às exigências da contemporaneidade. O personagem de Kaluuya agiganta-se por sua ação política disciplinada, eloquente e incansável que como um imã acaba lançando sobre si as atenções da opinião pública, conquistando uma veneração e lealdade insuspeita daqueles que o cercam, assim como inevitavelmente suscitando o ódio inescrupuloso de Hoover e do FBI. Ora, toda essa importância heroica individualizada e personalista, embora sejam repudiadas pelo jovem presidente, fincam as bases do seu próprio mito, o que de certa forma e até determinado momento da narrativa, torna o personagem um tanto “descolado” da realidade, aspecto logo reequilibrado pelo roteiro quando se volta para a humanização do Messias e seu relacionamento amoroso com Deborah, tornando tudo menos circunspecto ao aproximar o público da intimidade e do drama do casal. Em se tratando do “infiltrado”, cujo protagonismo no enredo é até difícil de definir, a trama não parece deixar evidente que a jornada ignominiosa do rapaz esteja carregada do ônus de uma crise de consciência inevitável, salvo algum indício de perturbação do personagem ao final do terceiro ato quando descobre que os dias de Hampton estão contados, e ainda que Stanfield comunique ambiguidade, desconfiança e mal estar na pele do “Judas”, o peso dramático da sua condição de traidor acaba cedendo mais espaço para um tipo reação e postura propensa à chantagem, à sedução e a manipulação ascendente do dissimulado agente Roy. Nesse sentido, o efeito desta escolha narrativa tende a vitimizar Bill, mas, lança luz e denuncia o modus operandi de um sistema sujo que “ameaça”, “seduz”, “compra” e “corrompe” consciências, muito embora, a “peça” central para fazer funcionar essa engrenagem pérfida, o obstinado Roy Mitchell, seja tratado pelo roteiro com certa dose de superficialidade e uma súbita mudança de personalidade que chega a soar incoerente. A direção de King capta com propriedade o clima social turbulento e hostil de Chicago do fim dos anos 60, contextualizando a trama com eficácia em seus primeiros instantes por meio de uma edição dinâmica com recortes e colagens de materiais audiovisuais documentais e logo em seguida, aproveitando todo o potencial do design de produção sessentista intensamente atmosférico, cuja ambientação e cenários fidedignos, registrados pela paleta fria e dessaturada da fotografia reforçam o efeito realista da encenação, assim como ajudam a compor o tom austero, decadentista e tenso dos acontecimentos. A decupagem moderna e estilizada conjuga seus planos e ângulos de câmera cobrindo ambientes e personagens interessada no realismo das tensões dramáticas, no registro cru e objetivo das ações (violência), no traquejo do contracenar, no uso instintivo da trilha ou dos sons ambientes e, sobretudo, na intensidade das performances individuais de Lakeith Stanfield e Daniel Kaluuya (vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante). King explora o talento e o comprometimento engajado do elenco principal com seus respectivos papéis, tornando sua mensagem política oportuna e provocadora para a atualidade através das sequencias empolgantes e memoráveis dos discursos inflamados do Presidente. “Judas e o Messias Negro” endossa a crescente tendência do cinema hollywoodiano nos últimos anos em ceder espaço para produções comprometidas com uma mensagem social engajada, politizada e até mesmo contra hegemônica. Se tal “abertura” é fruto do acirramento das tensões políticas nos Estados Unidos e da pressão e militância dos realizadores, não se pode definir com clareza, ainda mais quando se considera, no atual contexto da lucratividade capitalista, a perspicácia hipócrita, mas altamente lucrativa vinculada aos discursos do “marketing social”.
Por: Ábine Fernando Silva
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