Direção: Toshiya Fujita
Roteiro: Kazuo Koike/ Kazuo Kamimura
Elenco principal: Meiko Kaki (Yuki Kashima/Lady Snowblood), Miyoko Akaza (Sayo), Toshio Kurosawa (Ryûrei Ashio), Eiji Okada (Gishirô Tsukamoto), Kô Nishimura (Dôkai), Noburu Nakatani (Banzô Takemura), Sanae Nakahara (Okono), Takeo Chii (Tokuichi Shokei).
Baseado no célebre mangá homônimo de Kazuo Koike e Kazuo Kamimura, “Lady Snow Blood – A Vingança na Neve” narra a incessante saga da bela espadachim e "filha do submundo", Yuki Kashima (Meiko Kaji), forjada pela mãe como instrumento de vingança, missão que lhe foi curiosamente legada desde o nascimento. Yuki encarna a guerreira empenhada em destruir os membros de um clã criminoso que assassinou seu "padrasto" e seu meio "irmão", raptando sua mãe (submetida a abusos e violações sexuais, e posteriormente tomada como serva do bandido Tokuichi Shôkei (Takeo Chii). Passado alguns anos, Sayo (Miyoko Akaza) consegue furtivamente assassinar Tokuichi indo parar inevitavelmente numa prisão feminina. Consumida pela amargura brutal de toda violência experimentada e disposta a levar seu projeto de vingança até as últimas consequências mesmo reclusa, Sayo decide engravidar a todo custo para gerar um descendente capaz de cumprir seu plano obsessivo contra seus algozes. É desta forma que nasce a lendária guerreira Lady Snowblood, transportada das páginas do aclamada história de Koike e Kamimura para o filme de Fujita. O roteiro dos próprios criadores do mangá é marcado por flashbacks e digressões, abordando o passado da protagonista, seu nascimento e treinamento rigoroso com o mestre Dokai (Kô Nishimura), concebendo a genealogia da assassina a partir de um arco narrativo presente que a lança numa jornada investigativa para encontrar e matar os malfeitores que destruíram a vida de sua mãe (e consequentemente a sua), não sem alguns plots estimulantes e reviravoltas reservados para o último ato. A figura da insuspeita guerreira, que chama atenção como um dama de destaque social contrasta com suas habilidades na esgrima e sua destreza física, que nos são apresentadas logo no início do filme com uma introdução para lá de sangrenta, num espetáculo de violência gráfica estilizada através dos jorros de sangue torrenciais e membros decepados (a bela moça liquida um gangster e seus comparsas em troca da ajuda do líder de uma quadrilha de mendigos). A contextualização histórica didática, com ilustrações e narração ajuda a embasar o arco de Yuki, justificando inclusive todas as desgraças que recaíram sobre sua mãe (o marido de Sayo é acusado inescrupulosamente de ser um agente corrupto do governo por vestir-se de branco e à moda ocidental). A trama apresenta um Japão em vias de modernização (Era Meiji, período de abertura econômica e fortes transformações político-sociais), com uma proposta governamental expansionista e belicista, marcado pelo alistamento militar compulsivo da juventude, o que resultou em convulsões populares, anarquias distritais e corrupção institucional (os representantes do novo governo identificado com os valores ocidentais são tidos como figuras desprezíveis, corruptas e traidoras). Tantas mudanças dinâmicas na sociedade japonesa produziram impactos no que se refere à difusão da informação, e desta forma, a trama introduz um personagem ligado à imprensa (símbolo do progresso urbano moderno), o escritor e ilustrador Ryûrei Ashio (Toshio Kurosawa), par romântico platônico de Yuki, que decide contar a história da “Lady Snowblood” no jornal, num criativo exercício de metalinguagem que o roteiro aproveita.
A produção do filme “Lady Snowblood – A Vingança na Neve” já merece crédito de antemão por corajosamente trazer para as telas um enredo protagonizado, sobretudo, por mulheres, num subgênero cinematográfico tradicionalmente pautado pelo excesso de testosterona. Por mais que as virtudes guerreiras de Yuki sejam acentuadamente marcadas por uma feminilidade estereotipada (difícil imaginar que a personagem possua habilidades marciais tamanha etiqueta), sua força, perseverança e brutalidade em batalha geram o contraste do disfarce perfeito, colocando sob o julgo de sua espada "camuflada" na discreta "sombrinha" todos os vilões e machões caricatos do filme. A construção da personagem durona, fria e obstinada, marca de uma trama insistente em promover a vingança como mote, não esconde certo artificialismo, desumanizando um pouco a guerreira, sempre séria, circunspecta e tomada por um objetivo que lhe rouba o prazer de outros prazeres da vida (ao longo do filme, a personagem esboça certa candura, sensibilidade e sentimento, mas infelizmente, tais manifestações são logo reprimidas). A atriz Meiko Kaji desenvolve uma performance contida e introspectiva, sempre com um olhar severo, cortante e modos insuspeitos, deixando a desejar um pouco no aspecto de extravasar a fúria e o ódio remoídos por tanto tempo. Certamente um dos vários méritos dos filmes de Quentin Tarantino também inspirados na saga vingativa da filha do submundo, “Kill Bill, vol. I, (2003) e Kill Bill, vol. II, (2004) foi explorar as vicissitudes e potencialidades humanas de Beatrix Kiddo (Uma Thurman), versão ocidental da assassina japonesa, aproximando seus dilemas, dores e dissabores da realidade e das expectativas do público. Sobre a direção, “Lady Snowblood – A Vingança na Neve” aproveita uma decupagem arrojada e realista, repleta de cenas de combate montadas através de planos detalhe (explorando a violência extrema dos estragos da lâmina de Yuki) e com o uso de uma câmera de mão trêmula e vibrante, às vezes subjetiva, orbitando a personagem e captando uma série de movimentos simultâneos (há uma influência direta da linguagem dos mangás no que se refere às cenas de ação). A mise en scene intimista de Toshiya Fujita empresta quase sempre um aspecto amargo e solitário à guerreira, seja em relação à ambientes mais convulsivos com sua bela cenografia de época e paisagens naturais, seja em ambientes privados caprichosamente produzidos pelo design de produção. O figurino de Yuki, composto de quimonos sempre brancos, na maioria das cenas, alude à neve (metáfora de sua personalidade e condição), contrastando com o rubro do sangue de suas vítimas (guerra, violência e morte) e simbolizando seu estado permanente de luto e tristeza. Em relação ao uso da violência extremada nas cenas de combate, talvez não impressione àqueles mais acostumados ao estilo tarantiniano, no entanto, o exagero de litros e litros de sangue esguichados das feridas feita pela “geta” da assassina, aliados à alguns gestos teatrais dos vilões ao morrerem tendem a suralgum efeito cômico. A música tema do filme que sintetiza e premedita o próprio destino da protagonista é marcante, triste e estrategicamente utilizada no desfecho mortífero da filha do submundo, cujo palco simbólico e límpido da neve, testemunha outra vingança, derradeira, levada a cabo pela filha de Banzo Takemura (Noburu Nakatani), o primeiro bandido eliminado na jornada sangrenta de Lady Snowblood. O protagonismo feminino num subgênero cinematográfico predominantemente masculino, a narrativa fluída e envolvente, repleta de combates sangrentos e alusões históricas que revelam certo rancor japonês acerca das relações tão ambíguas e complexas com o ocidente, são alguns dos grandes atrativos que fazem valer muito a pena a experiência com “Lady Snowblood – A Vingança na Neve”.
Por: Ábine Fernando Silva
Comments