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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Medida Provisória (2020)

Atualizado: 19 de out.

Direção: Lázaro Ramos

Roteiro: Lázaro Ramos, Aldri Anunciação, Lusa Silvestre, Elisio Lopes Jr e Elisio Lopes

Elenco principal: Taís Araújo, Alfred Enoch, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Mariana Xavier, Paulo Chun, Pablo Sanábio, José Hilton Santos de Almeida, Aldri Anunciação.

Taís Araújo, Seu Jorge e Alfred Enoch estrelam o primeiro filme de Lázaro Ramos

Lançado em meio a um frisson polêmico devido ao atraso escandaloso na estreia, motivado por um boicote intencional por parte do atual Governo Federal, “Medida Provisória” é o primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos, nascendo de uma adaptação da peça teatral “Namíbia, Não” de Aldri Anunciação. Enquanto proposta ativista e intervenção cultural no debate nacional acerca do racismo estrutural e reflexão sobre o atual cenário político de instabilidade democrática, o longa do diretor baiano representa um gesto artístico de resistência, espécie de produção com viés pedagógico de embate e disputa, cuja provocação apaixonada e engajada do autor (e porque não sua inexperiência por trás das câmeras) parece se sobressair ao domínio criativo e a articulação sóbria de uma unidade estilística que torne a experiência da obra mais completa e substantivamente cinematográfica. Se por um lado “Medida Provisória” sustenta uma dramaturgia cheia de vigor didático em relação à tese sociológica que promove, por outro lado, acaba expondo certas fragilidades comprometedoras que vão desde um tratamento genérico e segmentado da trama e do seu macro conflito, limitado à circunscrição de espaços mais delimitados, passando pela superficialidade dramática e psicológica dos personagens, até a dificuldade de articular um tom coerente e imersivo, a medida que se embrenha por gêneros diversos. Num futuro não muito distante, o governo brasileiro decide arbitrariamente modificar sua política indenizatória de reparação histórica em relação aos afrodescendentes, propondo uma “medida provisória” de incentivo e patrocínio diaspórico rumo à África para todos os melaninados do território. A situação vai se tornando cada vez mais tensa e violenta quando as forças repressivas do Estado, sob o comando da racista Isabel (Adriana Esteves), passam a recorrer às prisões, assassinatos e deportações coercivas, fazendo com que o advogado Antonio (Alfred Enoch) e seu primo, o jornalista independente André (Seu Jorge) se refugiem no apartamento, local juridicamente incólume ao cumprimento do decreto. Enquanto isso, a esposa de Antonio, a médica Capitú (Taís Araújo) consegue fugir da polícia, sendo acolhida em um Afrobunker, espécie de célula clandestina de resistência negra, mas, precisa de alguma forma reencontrar seu companheiro, unindo forças para enfrentar essa tenebrosa realidade. Embora o roteiro de “Medida Provisória” parta de uma premissa declaradamente distópica como gatilho para o desenvolvimento de seu principal conflito dramático (a indenização financeira como reparação histórica pela escravidão seguida da lei estatal de incentivo à expatriação em massa dos melaninados), a sucessão de situações explícitas que denunciam a chaga do racismo estrutural ao longo da narrativa, algumas sacadas provocativas que evocam episódios verídicos da vida política nacional recente e o próprio discurso político institucionalizado no Brasil extra ficção, deslegitimando as pautas e direitos das minorias, tornam o longa de Lázaro Ramos muito mais realista e sinérgico com seu contexto histórico, ignorando de certa forma o deslumbre de uma narrativa que se vende como uma “distopia” e abraçando o didatismo do drama social engajado.

Renata Sorrah (Dona Izildinha) e Adriana Esteves (Isabel) aparecem como vilãs em Medida Provisória

O texto amplamente colaborativo da trama (escrito a cinco mãos) busca articular sua potente premissa propondo algum transito entre os gêneros, seja no próprio drama, no romance, na ação, no suspense e, sobretudo, no humor ácido, porém, pouca solidez e profusão se alcança entre as partes e o todo, como se certas sequencias e diálogos do filme funcionassem primeiro, sem muita substancia e depois, sem muita conexão dramática, sobressaindo-se a exposição meio banal e martelada da tese do racismo institucional, tornada repentinamente e abertamente política de governo. Talvez, o espírito inconformado e engajado da obra, assim como sua gênese híbrida e teatral tenha dificultado sua conformação cinematográfica, o que se constata pela predileção do tratamento “atomizado” da encenação, do pífio aprofundamento psicológico e da estereotipação dos personagens, além do aspecto um tanto genérico de certos dramas centrais, fatores que incidem negativamente sobre a experiência imersiva. Não que “Medida Provisória” falhe por completo em seu fluxo narrativo, pelo contrário, os debates que o enredo advoga são imprescindíveis e possuem uma conexão espantosa com um Brasil em que o absurdo virou regra e certamente algumas de suas sequencias são bastante inspiradas, alcançando profusão e impacto como aquelas mais sarcásticas e irônicas protagonizadas pelo profícuo e versátil Seu Jorge ou mesmo as mais apreensivas, poéticas e intensas interpretadas com muita volúpia por Alfred Enoch e Taís Araújo. No mais, a inclinação maniqueísta e a caricatura vilanesca do texto parecem subaproveitar e ofuscar o talento de nomes como Renata Sorrah e Adriana Esteves em seus papéis, haja vista o comportamento racista taxativo de Dona Izildinha e Isabel, ainda mais desenfreados a partir do momento em que o governo federal assume uma política segregacionista e violenta. A direção de Lázaro é bastante empenhada tecnicamente na sofisticação dos planos e na fotografia, perseguindo e até alcançando o tom narrativo apropriado em certas cenas, principalmente as mais poéticas e satíricas, centradas nas performances individualizadas. A intimidade e o traquejo do realizador com a comédia é o que mais se sobressai (às vezes, com algum excesso desnecessário), da mesma forma que a importância dada a mise-en-scene, especialmente, na abordagem cenográfica dos “Afrobunker’s” (quilombos reeditados), no design de produção e mesmo na formidável trilha sonora composta por nomes como Rincón Sapiência, Baco Exu do Blues e Elza Soares constituem um ponto forte do filme, sempre se propondo referências (easter-eggs) e construções semânticas riquíssimas com elementos do pensamento e da cultura negra, reforçando aspectos pedagógicos e estabelecendo uma espécie de “lugar de fala” audiovisual que conclama a resistência. Em se tratando de uma obra de estreia e tendo em vista a necessidade e a centralidade do debate sobre a questão racial no Brasil, “Medida Provisória” inibe nosso rigor e julgamento formal acerca de seus deslizes cinematográficos, provocando-nos com sua rebeldia e convidando-nos também à reflexão em relação ao retrocesso político e democrático em vigência no país.


Por: Ábine Fernando Silva

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