Direção: Bong Joon Ho
Roteiro: Bong Joon Ho, Sung-bo Shim
Elenco principal: Park Doo-man (Song Kang-ho), Seo Tae-Yoon (Kim Sang-kyung), Cho Yong-koo (Kim Roe-ha), Baek Kwang-ho (Park No-shik), Byeon Hee-bong (Sargento Koo Hee-bong), Song Jae-ho (Sargento Shin Dong-chul).
Obra responsável por chamar a atenção para a peculiaridade do talento de Bong Joon-Ho, “Memórias de um Assassino” certamente integra a lista dos mais importantes filmes sul-coreanos dos últimos anos, consolidando a potência cinematográfica do país asiático, cuja verve autoral e criativa passou a chamar a atenção do público ocidental, especialmente, na entrada do novo século. Inspirado em eventos reais acontecidos em Hwaseong, uma pequena província interiorana na Coréia do Sul nos anos de 1986 a 1991, o enredo aborda uma série de feminicídios perpetrados por um psicopata em circunstâncias bem peculiares que chocaram a sociedade e desnortearam as autoridades, tamanha incapacidade racional e empírica em lidar com o fenômeno. É desta forma que a trama nos convida a acompanhar a princípio as peripécias e lances equivocados do desarticulado detetive Park Doo-man (Song Kang-ho) e de seu parceiro impulsivo e violento, o detetive Cho Yong-koo (Kim Roe-há) que diante da natureza complexa dos assassinatos e da ineficiência técnica para investiga-los, numa total condição obscurantista, passam a levar em consideração elementos pouco confiáveis como a possibilidade da autoria das mortes estar ligada a Baek Kwang-ho (Park No-shik), um pobre rapaz com distúrbios mentais e que acaba preso e torturado insistentemente pela simples evidência de ser apaixonado e perseguir uma das vítimas. Mesmo com o reforço investigativo vindo de Seul na figura do detetive Seo Tae-Yoon (Kim Sang-kyung) pouco se consegue alcançar e elucidar em relação aos casos, ainda que o investigador da capital demonstre perícia, método e extinto para construir inferências e hipóteses mais concisas, levando a equipe de investigadores a evidencias robustas, no caso, a de que o assassino escolhia mulheres muitas vezes com alguma peça de roupa vermelha, sempre em noites chuvosas e após a transmissão de uma canção romântica tocada na rádio local. O roteiro de “Memórias de um Assassino” se concentra em explorar a rotina dos agentes provincianos e simplórios diante dos percalços na investigação dos assassinatos em série, destacando a obtusidade, o despreparo e a presunção inocente manifestadas em suas incertas investidas, marcadas pelo excesso violento, por uma espécie de autoconfiança intuitiva, sem nexo e pela ineficiência técnica institucional das forças policiais, muito mais preocupadas em lidar com distúrbios de ordem social (revoltas e greves que sacudiam o país na época). A comicidade trágica constantemente evocada ao longo da trama diverte e choca, contraditoriamente, uma vez que Park Doo-man impulsivo, dotado de convicções equivocadas juntamente com seu destemperado parceiro colocam todo trabalho e esforço coletivo da investigação em xeque. Desta forma, a atmosfera densa e pessimista ancorada por uma iluminação lúgubre e uma paleta escura (cinza, azul e pastel), é constantemente contrabalanceada pela irreverência espontânea e o jeitão desengonçado, mas sincero dos personagens, caracterizados em seus momentos íntimos, irreverentes e angustiosos, embora, empenhados em cumprir da melhor maneira possível seus deveres como representantes da lei.
Ainda que Bong Joon-ho ressalte os excessos hilários de seus personagens, sua intenção se volta para a humanização dos mesmos, estabelecendo com eficiência uma conexão empática conosco. A subversão do thriller policial com a desconstrução cômica do tradicional herói detetive, sempre competente e genial, os constantes equívocos que fazem os investigadores andarem em círculos, assim como a quebra das expectativas em relação a um desfecho convencional são acompanhadas pela versatilidade de um roteiro que não se limita aos rótulos de gênero, equalizando o suspense, o terror e o drama de forma eloquente. Soma-se a isto, uma estratégia que delimita as informações e pistas acerca do provável serila killer, não entregando mais do que os próprios protagonistas já sabem, nos colocando angustiados, ansiosos como eles e desconfiados de que se trata de uma situação irremediável e sem subterfúgios, confirmada pela banalidade chocante de que o assassino pode ser qualquer cidadão comum, promovendo certa tese do absurdo e da banalidade do mal, da impotência humana diante do caos e de circunstâncias terríveis, imprevisíveis e incontroláveis. Vale destacar a sutileza da contextualização político-social influente na trama, onde se entreve uma Coréia do Sul sob regime ditatorial e repressivo atravessada por manifestações populares e greves, representada por uma polícia confusa, incompetente e que se vale da violência e da tortura como procedimento investigativo, mesmo com os insistentes protestos da sociedade civil que denunciava tais práticas. A direção de Bong Joon-ho disposta a levar até as últimas consequências a tese da irreversibilidade da solução dos assassinatos (lembrando Zodíaco, 2007, David Fincher) concentra-se nos momentos dramáticos que traduzem a natureza de seus personagens, sua vida ordinária, anseios e frustrações, recorrendo a alguns planos sequências que os acompanham a certa distância, revelando-os por meio das interações coletivas de efeito tragicômico, ou ainda com o uso de uma câmera discreta, muitas vezes interessada numa composição de planos abertos, permitindo-se registrar uma série de manifestações simultâneas e ações cruas, bem coreografadas e naturais. A direção de atores impecável do cineasta sul-coreano aproveita o talento de um elenco alinhado às disposições dramáticas do texto, destacando-se as performances de Song Kang-ho na pele do detetive Park Doo-man, comunicando uma naturalidade simples e genuína em sua conduta tão segura e intrépida que suas ações mesmo bem intencionadas e sérias tornam-se desastrosas, gerando o escárnio e o deboche. Já Kim Sang-kyung interpreta com circunspecção e seriedade Seo Tae-Yoon, o detetive recém-chegado de Seul para colaborar com as investigações, representando a antítese cerebral de Park Doo-man (escancarando a discrepância profissional e técnica entre centro x província). O empenho sincero do personagem em capturar o serial killer faz a investigação progredir, no entanto, a complexidade de compreensão do fenômeno e a impossibilidade conclusiva dos fatos, leva-o aos mesmos excessos violentos de seu colega, evidenciando a tragédia irracional que inevitavelmente engole a todos diante do estresse intenso e da provação dos limites psicológicos e emocionais. Por outro lado, Kim Roe-há vive o descontrolado e carrancudo investigador Cho Yong-koo, figura que encarna a mão pesada e brutal da polícia, sempre disposto a torturar os suspeitos sem a menor cerimônia com seu coturno implacável. Vale mencionar ainda as atuações repletas de uma fisicalidade engraçada, comovente e sincera de Park No-shik atuando como o jovem Baek Kwang-ho, sujeito acometido por distúrbios mentais e protagonista de muitos momentos tensos, cômicos e violentos experimentados junto à desorientada equipe de detetives. Em suma, “Memórias de um Assassino” carrega o “embrião” de muitas das qualidades que evidenciariam e promoveriam o talento de Bong Joon-ho, acenando já lá no início dos anos 2.000 para o singular senso estético do diretor, cujas excelentes produções tem ajudado a consolidar ainda mais a grande reputação internacional do cinema sul-coreano mundo afora.
Por: Ábine Fernando Silva
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