Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Elenco principal: Carlos Vereza (Graciliano Ramos), Glória Pires (Heloísa), Nildo Parente (Emanuel da Silva Cruz), Tonico Pereira (Desidério), José Dumont (Mario Pinto), Wilson Grey (Gaúcho), Jofre Soares (Soares), Gilson Moura (Capitão Mota).
Adaptação homônima do romance de Graciliano Ramos publicado em 1953, o filme de Nelson Pereira dos Santos narra o calvário pessoal do escritor alagoano nas prisões da ditadura Vargas, abordando através de uma ótica bastante peculiar do texto literário a trajetória lamuriosa de privações físicas, sofrimentos e arbitrariedades experimentados pelo “preso político” e perpetrados por um governo autoritário, ancorado na paranoia da caça às bruxas, cujas intenções ideológicas e irracionais lançaram na clandestinidade um sem número de personalidades identificadas como comunistas ou ameaça subversiva aos interesses nacionais. O roteiro de Nelson Pereira sintonizado com o contexto político-social brasileiro da Ditadura Militar (1964-1985) opta por uma construção narrativa que se lança ao passado histórico dos anos de 1936-1937 para refletir sobre o presente, estabelecendo por um lado, uma isonomia semântica e pertinente entre duas experiências autoritárias, ressaltando em sua cinematografia engajada o absurdo das perseguições, ataques, encarceramentos e assassinatos através da percepção austera, irascível e descrente de um intelectual que interpreta e julga tais injustiças à sua volta como um gesto precipitado, desesperado e obtuso de um de governo que resiste e nega-se a rever seus excessos, prolongando os dissabores do protagonista que aguarda resiliente e conformado alguma retratação a respeito de seu próprio processo. Desta forma, o expectador acompanha a apresentação e caracterização de Graciliano Ramos (Carlos Vereza), personagem bastante firme em seus princípios éticos e profissionais, diretor de instrução do estado de Alagoas (um cargo público equivalente a secretário de educação), romancista estabelecido (o filme justifica sua significativa notoriedade), sujeito duro, sério e compenetrado, cuja postura taciturna e fria reflete inclusive nos constantes desentendimentos no relacionamento com a esposa Heloísa (Glória Pires). Inadvertidamente o protagonista recebe ordem de prisão, sem quaisquer esclarecimentos formais acerca da acusação ou processo e sem oferecer resistência alguma, num absorto ceticismo, é encaminhado para um quartel militar, transferido logo em seguida para uma detenção de presos políticos até experimentar finalmente a miséria humana da Colônia Correcional, em Ilha Grande, Rio de Janeiro. Preocupado em destacar as intempéries físicas, psicológicas e os relacionamentos do escritor no cárcere (ou suas tentativas de se relacionar), Nelson dá pouca atenção a uma gama interessante de personagens com muito potencial dramático que cruzam o caminho de Graciliano, negligenciados numa representatividade um tanto rasa. Seja o Capitão Mota (Gilson Moura), poeta subversivo que acompanha o escritor até a prisão política, seja Mario Pinto (José Dumont) prisioneiro militar de uma fanfarronice ímpar, passando por Gaúcho (Wilson Grey), criminoso comum da Colônia Correcional ou mesmo o operário ranzinza Desidério (Tonico Pereira), todos estes, constituem exemplos importantes de figuras que poderiam ter um melhor aproveitamento dramático e tempo de tela. Não obstante, a direção empenhada na abordagem dos vínculos coletivos, na camaradagem fraterna que funciona como uma atitude de resistência às hostilidades do sistema explora os ambientes internos, fechados e reclusos não de uma maneira que possa suscitar o desconforto claustrofóbico e a solidão insuportável, pelo contrário, os planos abertos conjugando personagens e ambientes, funcionam como espaços de experiências políticas altruístas, reflexões sociais implacáveis, organizações solidárias, além de observatório da vivência de um personagem que não se encaixa em rótulos ideológicos, em exercício de compreensão de seu lugar no mundo, tão comedido e fechado para relações mais estreitas e calorosas. Diferentemente do romance que insiste com veemência na construção de uma atmosfera narrativa pessoal que não suporta a brutal desumanização e descaso da ditadura Vargas com a injustiça de uma falta de processo criminal, um abandono dos detentos a condições precárias de alimentação e a sordidez repugnante de locais insalubres, o longa do cineasta brasileiro foca muito mais no espírito resistente da coletividade, nas críticas diretas ao fascismo que criminalizava principalmente os comunistas e na capacidade de sobrevivência de uma inteligência sagaz que recorre ao artifício intelectual da escrita, mecanismo tão caro ao sisudo alagoano, como forma de superação das adversidades, de alheamento das misérias que o rodeavam, impulso de vida, escapismo dos horrores psicológicos, atividade que por sua vez, aproximava involuntariamente Graciliano Ramos de autoridades e lideranças dos cárceres (o escritor já gozava certa fama pelas publicações de “Caetés” e “São Bernardo”). Nelson Pereira dos Santos atinge um lirismo narrativo comovente em algumas cenas de “Memórias do Cárcere” ao incorporar momentos de interação musical entre os personagens, expressando o sentimento fraterno dos injustiçados que num mesmo compasso rítmico, cadenciado, numa espécie de transe coletivo, afagam por instantes suas dores, mágoas e incertezas na entoada de um “Canto da Ema” puxada pelo carismático personagem de José Dumont no porão do navio ou o “Orvalho vem Caindo” alegremente interpretado pelas detentas que dividem o mesmo complexo prisional que seus companheiros. Carlos Vereza incorpora com convicção e verdade a rudeza introspectiva de Graciliano Ramos nos modos e expressões faciais, muito embora a fala do personagem soe um pouco artificial, com construções vernáculas que parecem ter saído das páginas de um livro e não fruto de uma comunicação oral mais direta e verossímil. Aliás, esse é um problema que se estende a quase todos os personagens da trama, independente da sua condição social. Há uma omissão, talvez proposital, no que diz respeito à contextualização ou datação dos eventos e a indicação dos locais, o que pode dificultar um pouco a orientação do público em se tratando de uma narrativa inspirada em acontecimentos reais. O mundo externo às prisões é praticamente ignorado, dado, porém que não interfere na representação em tom de denúncia do autoritarismo do governo e de seu descaso intencional em relação aos presos políticos e ao próprio escritor, transferido para a Colônia Correcional, lugar de detenção de criminosos comuns e onde o protagonista experimenta os limites de sua existência, atingindo um nível de degradação física e esgotamento psicológico apenas suportado com a ajuda do papel e do lápis. “Memórias do Cárcere” é um filme que se insere no importante marco da luta pró-democracia tendo em vista seu contexto de produção e lançamento em 1984. Ao debruçar-se sobre nuances da história autoritária brasileira da década de 1930, o filme de Nelson Pereira dos Santos alerta-nos sobre a atualidade dessa chaga social que reluta em cicatrizar, tamanho entranhamento institucional, funcionando como um importante exercício de reflexão sobre os desmandos fascistas, mas, sobretudo, como um respiro impetuoso de resistência que se impõe através da esperança da luta coletiva contra todas as injustiças.
Por: Ábine Fernando Silva
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