Direção: Hayao Miyazaki
Roteiro: Hayao Miyazaki
Personagens principais: Satsuki Kusakabe, Mei Kusakabe, Tatsuo Kusakabe, Totoro, Vovó Kanta, Kanta Ogaki, Yasuko Kusakabe.
Animação sensível e terna, transbordante de afetividade poética, “Meu Amigo Totoro” constrói-se como uma espécie de conto de fadas moderno, suscitando reflexões profundas sobre uma série de temáticas existenciais e humanas universais: amor fraternal, solidariedade e compaixão, amizade e sabedoria anciã, inocência e fantasia infantil, consciência cósmica e reverência panteísta, esperança e enfrentamento do luto, etc. A riqueza singela dos traços arredondados de Miyazaki, cheios de colorações sugestivas, humanas e meigas sustentam uma narrativa que com simplicidade vivaz explora mais veemente o universo de curiosidades e pureza das crianças, sua peculiar maneira de encarar o mundo, a vida e os problemas da existência. É desta forma que o expectador embarca na história das irmãs Mei e Satsuki que vão morar num vilarejo rural com o pai, o professor universitário Sr. Tatsuo Kusakabe, ficando mais próximas da mãe, a Senhora Yasuko que se encontra internada num hospital, passando provavelmente por um tratamento contra a tuberculose. Conforme a família Kusakabe se estabelece na residência (que os vizinhos acreditam ser assombrada), reformando-a, trazendo vida e alegria para o ambiente, a inquieta Mei conhece inusitadamente uma criatura alta, fofa e acinzentada, mescla de gato, urso e coruja, cujo nome é reproduzido em seu próprio ronco forte e vibrante “To-ro-ru” (reproduzido como To-to-ro pela menina). A referência a “Alice No País das Maravilhas, 1865" de Lewis Carroll é percebida logo de cara, quando a garotinha persegue os dois seres pequeninos (muito parecidos com o gigantesco Totoro) rumo à floresta e acaba se embrenhando por um túnel de vegetação que a leva direto a um buraco onde habita a simpática criatura sonolenta (o mesmo acontece com Alice ao perseguir o coelho branco e cair no buraco). Não passa muito tempo até que Mei conta ao pai e a irmã a respeito da existência do novo amigo (que acaba também sendo conhecido por Satsuki e conectando-se com a garota mais velha), um espírito da floresta, conforme o próprio Sr. Tatsuo Kusakabe o compreende. A relação de reverência, harmonia e respeito à floresta, seus seres e seus mistérios se manifestam não só na maneira em que as crianças se comportam e relacionam-se com o ambiente natural como também os próprios adultos do enredo. Desta forma, a pureza e a inocência das pequenas parece elevá-las a uma condição especial e divina (a vovó inclusive diz que alguns fenômenos sobrenaturais são só perceptíveis às crianças), ao passo que o pai das meninas e a vovó Kanta também comungam desta espécie de consciência mística que torna a relação dos humanos com a natureza algo sacralizado e devoto (sem dúvidas que a filosofia budista e xintoísta ecoam nas atitudes dos personagens e também na ambientação da animação). Para além desta relação cosmológica e espiritual com o meio ambiente expressada pelos personagens, “Meu Amigo Totoro” é sensível ao demonstrar como a relação entre irmãos, amigos ou comunidade se desenvolve num jogo de imitações pueris, na confiança e espontaneidade sem melindres e na demonstração do sacrifício simples e singelo, porém, cheio de significado fraterno e amoroso (o guarda-chuva bem surrado que é emprestado durante uma tempestade, o cuidado materno e carinhoso da anciã com as meninas, a proteção de Totoro no ponto de ônibus com as irmãs esperando pelo pai, a mobilização da comunidade entorno da procura de Mei, etc.). O roteiro mesmo construindo uma atmosfera mágica e fantástica em torno das aventuras das duas irmãs, do meigo monstro e seus simpáticos companheiros, não deixa de suscitar no público uma expectativa nebulosa e pessimista em relação ao destino da enferma mãe das meninas e também no que diz respeito ao desaparecimento da garotinha Mei. Chega a pairar sobre a trama uma sombra de “choque traumático” ou “tragédia” iminente e o fato das garotinhas serem as únicas personagens a manterem contato com os seres sobrenaturais da floresta podem sugerir algum escapismo insuspeito ou refúgio à dura realidade da doença e da morte. Ao final do terceiro ato, prevalece o tom otimista, o milagre e a entrega de um amor puro e incondicional que salva a todos, Satsuki da sua indignação e descontrole, Mei da sua triste revolta e imprudência e a senhora Yasuko recuperada do quadro clínico extremamente delicado. Ainda bem que as coisas acabam dando certo, caso contrário, a animação de Miyazaki seria mais lembrada como um golpe injusto e impiedoso em nossos pobres corações esperançosos.
Por: Ábine Fernando Silva