Criação: Mike Flanagan
Disponível: Minissérie Netflix
Elenco principal: Zach Gilford, Kate Siegel, Hamish Linklater, Rahul Kohli, Samantha Sloyan, Henry Thomas, Alex Essoe, Annabeth Gish, Kristin Lehman, Igby Rigney, Annarah Cymone.
Terceira superprodução emplacada pelo cineasta Mike Flanagan em parceria com a Netflix, “Missa da Meia-Noite” se furta aos topos das mansões (elemento corriqueiro na estética do diretor americano), estendendo o escopo dos conflitos humanos e do drama existencial, do qual em grande medida seu terror depende, para um cenário mais amplo, complexo e ambicioso, a fictícia e pacata comunidade da Ilha Crockett. Embora seja um projeto gestado por Flanagan há algum tempo, inclusive, acenando como easter egg no filme “Hush: A Morte Ouve” de 2016, “Missa da Meia-Noite” finalmente ganhou as telas em 2021 no formato de minissérie, despontando como uma das melhores novidades do ano no serviço de streaming. O lançamento da narrativa cuja reflexão fundamental apresenta a instrumentalização do mal travestido de vontade divina não poderia encontrar ocasião mais oportuna, vindo de encontro a certa tendência social e contemporânea, observada em grupos religioso-cristãos que manifestam um fanatismo cego, intolerante e presunçoso, capaz de toda série de arbítrio justificado. De fato, a potência dramática da minissérie encontra seus grandes momentos no debate em torno de dilemas ético-morais que orbitam a esfera da fé cristã, no entanto, a rica dramaturgia de Flanagan vai muito mais além, propondo um terror atmosférico e psicológico que dialoga com a tradição, ganhando fôlego graças às escolhas humanas insensatas e egoístas, da mesma forma que também se envereda por temáticas filosóficas a respeito do valor das crenças, da culpa, do perdão e da redenção, articulando plots criativos e surpreendentes. Após amargar alguns anos de prisão por vitimar uma jovem ao estar dirigindo embriagado ao volante, Riley Flynn (Zach Gilford) decide retornar à casa da família na erma Ilha Crockett, tentando lidar com esse doloroso trauma ao passo que uma nova promessa de recomeço se lhe apresenta como horizonte. Nesse ínterim, o provinciano e comunitário vilarejo católico da ilha acaba ganhando uma nova e inesperada liderança religiosa na figura do misterioso padre Paul Hill (Hamish Linklater), fato que surpreende a todos, uma vez que se aguardava naturalmente o retorno de férias do antigo pároco, o velho Monsenhor Pruitt. Eventos estranhos passam a envolver o novato líder cristão, assim como milagres ou maldições se manifestam através de suas ações, intrigando e dividindo os habitantes locais quanto à legitimidade da influência espiritual do sacerdote. A revelação sinistra de uma criatura notívaga ancestral ligada ao padre Paul lança luz sobre os bizarros e intrigantes eventos recentes, não abalando, no entanto, as convicções da fanática beata Bev Keane (Samantha Sloyan), mas, mudando de uma vez por todas o destino dos habitantes da ilha, especialmente, da paraplégica Leeza (Annarah Cymone), do atormentado Riley , da sofrida Erin (Kate Siegel), da debilitada Mildred Gunning (Alex Essoe) e do sensato xerife mulçumano Hassan (Rahul Kohli). Flanagan desenvolve sua minissérie ao longo de sete episódios, encerrando uma conexão metafórica sugestiva e sequencial entre estes e alguns livros bíblicos tradicionais que lhes dão nome (Gênesis, Salmos, Provérbios, Lamentações, Os Evangelhos, Atos dos Apóstolos e Apocalipse). O que o cineasta americano propõe em “Missa da Meia-Noite” é submeter os sofrimentos e conflitos humanos provenientes de escolhas egoístas e ações inconsequentes ao terror da tradição vampiresca, potencializando os efeitos dramáticos da trama com interessantes nuances criativas, uma vez que a manifestação do mal sobrenatural se nutre e propaga-se numa relação direta com os desejos sombrios e as intenções escusas do novo sacerdote, sua dissimulada obreira e parte da comunidade.
Desta forma, a perversidade insana e a hipocrisia da beata Bev camuflada por toda sorte de justificação divina, o pacto de sangue do Monsenhor Pruitt com a criatura alada proporcionando-lhe juventude e dons milagrosos e até mesmo a aceitação e a fé cega de boa parte dos fiéis legitimando um mal já revelado dão contornos mais sinistros aos acontecimentos, relegando ao demônio sugador de sangue um papel ulterior, sorrateiro e terrível no momento certo. A discussão em torno de um aspecto bastante comum ao cristianismo traduzido pela promessa de acolher toda sorte de pecadores, fazendo-os trilhar um caminho de arrependimento, perdão e redenção atravessa o enredo chamando a atenção não só ao arco do amargurado “protagonista”, consumido pela culpa e cético às promessas de renovação da religião, como também à maneira em que se opera a personalidade e as atitudes do padre Paul, escondendo a verdade, espalhando a maldição do sangue nas casas e nos cultos, fazendo vítimas para aplacar sua fome, porém, convencido de um suposto aval divino purificador atestado pela consciência. Mike Flanagan tece a trama de “Missa da Meia-Noite” articulando com parcimônia e estratégia os “plot twist”, subvertendo as expectativas em relação ao desfecho dos eventos e aos protagonismos, redimensionando certas convenções do terror e concentrando ímpeto dramático na tragédia individual e coletiva. Em geral, o fenômeno religioso aparece representado na minissérie através de duas concepções de fé completamente antagônicas, seja por meio do cristianismo católico da hipócrita, manipuladora e intolerante Bev, seja pelo islamismo do justo e sereno xerife Hassan. No entanto, o texto do roteiro propõe também uma espécie de moral humanista revestida de virtudes como a verdade, a justiça, a retidão e a compaixão, indo além das exigências dos credos e templos, exaltando, no fim das contas, a jornada do primogênito Flynn ao conferir-lhe significado existencial, coroando seu ato sublime sacrificial, auto piedoso e redentor. A cinematografia de “Missa da Meia-Noite” repete aqui a assinatura visual de outros trabalhos do cineasta americano, cujo interesse na concepção de universos narrativos peculiares é materializado em certos anacronismos cenográficos e retros, expressos no design de produção meio decadentista da ilha, no figurino oitentista dos personagens e na paleta de cores dessaturada da fotografia. A mescla entre o antigo e o moderno, se por um lado tende a suscitar certo estranhamento e confusão temporal, por outro, potencializa a atmosfera misteriosa e sombria de uma narrativa consciente do equilíbrio dramático entre alguma leveza na caracterização do convívio comunitário e familiar, a intensidade do drama e a rebeldia encarnada pelo personagem de Zach Gilford, a maturação gradativa do suspense e consequentemente insuspeita do terror vampiresco, personificado no horror propagado pela criatura nosferática alada, além das dedicadas performances do elenco principal com seus diálogos marcantes em torno de questões existenciais e dilemas ético-morais relacionados à religião. “Missa da Meia-Noite” é repleto de momentos dramáticos arrebatadores, resultado de um texto afiado, de uma direção de atores impecável e de um controle cênico insistente e sensível de seu realizador, aspectos que tendem a tornar o desenrolar dos acontecimentos mais morosos, nada que não se justifique adiante, deixando a ação empolgante e o terror encorpado a partir mais ou menos da segunda metade. Destaque para as os diálogos entre o padre Paul e Riley no episódio: “Livro II: Salmos” e entre Erin e Riley no episódio: “Livro IV Lamentações”; o primeiro provocativo e insinuante relativizando a necessidade real de uma fé católica e denunciando a faceta institucional parasitária da igreja, o segundo intenso e emocionante ao refletir a morte num viés materialista e cosmológico ao mesmo tempo. A parceria Mike Flanagan e Netflix prossegue em curva ascendente. Aguardemos o próximo trunfo.
Por: Ábine Fernando Silva
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