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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Missa da Meia-Noite (2021)

Criação: Mike Flanagan

Disponível: Minissérie Netflix

Elenco principal: Zach Gilford, Kate Siegel, Hamish Linklater, Rahul Kohli, Samantha Sloyan, Henry Thomas, Alex Essoe, Annabeth Gish, Kristin Lehman, Igby Rigney, Annarah Cymone.

Hamish Linklater (padre Paul) e Quinton Boisclair (vampiro) em Missa da Meia-Noite

Terceira superprodução emplacada pelo cineasta Mike Flanagan em parceria com a Netflix, “Missa da Meia-Noite” se furta aos topos das mansões (elemento corriqueiro na estética do diretor americano), estendendo o escopo dos conflitos humanos e do drama existencial, do qual em grande medida seu terror depende, para um cenário mais amplo, complexo e ambicioso, a fictícia e pacata comunidade da Ilha Crockett. Embora seja um projeto gestado por Flanagan há algum tempo, inclusive, acenando como easter egg no filme “Hush: A Morte Ouve” de 2016, “Missa da Meia-Noite” finalmente ganhou as telas em 2021 no formato de minissérie, despontando como uma das melhores novidades do ano no serviço de streaming. O lançamento da narrativa cuja reflexão fundamental apresenta a instrumentalização do mal travestido de vontade divina não poderia encontrar ocasião mais oportuna, vindo de encontro a certa tendência social e contemporânea, observada em grupos religioso-cristãos que manifestam um fanatismo cego, intolerante e presunçoso, capaz de toda série de arbítrio justificado. De fato, a potência dramática da minissérie encontra seus grandes momentos no debate em torno de dilemas ético-morais que orbitam a esfera da fé cristã, no entanto, a rica dramaturgia de Flanagan vai muito mais além, propondo um terror atmosférico e psicológico que dialoga com a tradição, ganhando fôlego graças às escolhas humanas insensatas e egoístas, da mesma forma que também se envereda por temáticas filosóficas a respeito do valor das crenças, da culpa, do perdão e da redenção, articulando plots criativos e surpreendentes. Após amargar alguns anos de prisão por vitimar uma jovem ao estar dirigindo embriagado ao volante, Riley Flynn (Zach Gilford) decide retornar à casa da família na erma Ilha Crockett, tentando lidar com esse doloroso trauma ao passo que uma nova promessa de recomeço se lhe apresenta como horizonte. Nesse ínterim, o provinciano e comunitário vilarejo católico da ilha acaba ganhando uma nova e inesperada liderança religiosa na figura do misterioso padre Paul Hill (Hamish Linklater), fato que surpreende a todos, uma vez que se aguardava naturalmente o retorno de férias do antigo pároco, o velho Monsenhor Pruitt. Eventos estranhos passam a envolver o novato líder cristão, assim como milagres ou maldições se manifestam através de suas ações, intrigando e dividindo os habitantes locais quanto à legitimidade da influência espiritual do sacerdote. A revelação sinistra de uma criatura notívaga ancestral ligada ao padre Paul lança luz sobre os bizarros e intrigantes eventos recentes, não abalando, no entanto, as convicções da fanática beata Bev Keane (Samantha Sloyan), mas, mudando de uma vez por todas o destino dos habitantes da ilha, especialmente, da paraplégica Leeza (Annarah Cymone), do atormentado Riley , da sofrida Erin (Kate Siegel), da debilitada Mildred Gunning (Alex Essoe) e do sensato xerife mulçumano Hassan (Rahul Kohli). Flanagan desenvolve sua minissérie ao longo de sete episódios, encerrando uma conexão metafórica sugestiva e sequencial entre estes e alguns livros bíblicos tradicionais que lhes dão nome (Gênesis, Salmos, Provérbios, Lamentações, Os Evangelhos, Atos dos Apóstolos e Apocalipse). O que o cineasta americano propõe em “Missa da Meia-Noite” é submeter os sofrimentos e conflitos humanos provenientes de escolhas egoístas e ações inconsequentes ao terror da tradição vampiresca, potencializando os efeitos dramáticos da trama com interessantes nuances criativas, uma vez que a manifestação do mal sobrenatural se nutre e propaga-se numa relação direta com os desejos sombrios e as intenções escusas do novo sacerdote, sua dissimulada obreira e parte da comunidade.

Zach Gilford e Hamish Linklater contracenam na minissérie de Mike Flanagan

Desta forma, a perversidade insana e a hipocrisia da beata Bev camuflada por toda sorte de justificação divina, o pacto de sangue do Monsenhor Pruitt com a criatura alada proporcionando-lhe juventude e dons milagrosos e até mesmo a aceitação e a fé cega de boa parte dos fiéis legitimando um mal já revelado dão contornos mais sinistros aos acontecimentos, relegando ao demônio sugador de sangue um papel ulterior, sorrateiro e terrível no momento certo. A discussão em torno de um aspecto bastante comum ao cristianismo traduzido pela promessa de acolher toda sorte de pecadores, fazendo-os trilhar um caminho de arrependimento, perdão e redenção atravessa o enredo chamando a atenção não só ao arco do amargurado “protagonista”, consumido pela culpa e cético às promessas de renovação da religião, como também à maneira em que se opera a personalidade e as atitudes do padre Paul, escondendo a verdade, espalhando a maldição do sangue nas casas e nos cultos, fazendo vítimas para aplacar sua fome, porém, convencido de um suposto aval divino purificador atestado pela consciência. Mike Flanagan tece a trama de “Missa da Meia-Noite” articulando com parcimônia e estratégia os “plot twist”, subvertendo as expectativas em relação ao desfecho dos eventos e aos protagonismos, redimensionando certas convenções do terror e concentrando ímpeto dramático na tragédia individual e coletiva. Em geral, o fenômeno religioso aparece representado na minissérie através de duas concepções de fé completamente antagônicas, seja por meio do cristianismo católico da hipócrita, manipuladora e intolerante Bev, seja pelo islamismo do justo e sereno xerife Hassan. No entanto, o texto do roteiro propõe também uma espécie de moral humanista revestida de virtudes como a verdade, a justiça, a retidão e a compaixão, indo além das exigências dos credos e templos, exaltando, no fim das contas, a jornada do primogênito Flynn ao conferir-lhe significado existencial, coroando seu ato sublime sacrificial, auto piedoso e redentor. A cinematografia de “Missa da Meia-Noite” repete aqui a assinatura visual de outros trabalhos do cineasta americano, cujo interesse na concepção de universos narrativos peculiares é materializado em certos anacronismos cenográficos e retros, expressos no design de produção meio decadentista da ilha, no figurino oitentista dos personagens e na paleta de cores dessaturada da fotografia. A mescla entre o antigo e o moderno, se por um lado tende a suscitar certo estranhamento e confusão temporal, por outro, potencializa a atmosfera misteriosa e sombria de uma narrativa consciente do equilíbrio dramático entre alguma leveza na caracterização do convívio comunitário e familiar, a intensidade do drama e a rebeldia encarnada pelo personagem de Zach Gilford, a maturação gradativa do suspense e consequentemente insuspeita do terror vampiresco, personificado no horror propagado pela criatura nosferática alada, além das dedicadas performances do elenco principal com seus diálogos marcantes em torno de questões existenciais e dilemas ético-morais relacionados à religião. “Missa da Meia-Noite” é repleto de momentos dramáticos arrebatadores, resultado de um texto afiado, de uma direção de atores impecável e de um controle cênico insistente e sensível de seu realizador, aspectos que tendem a tornar o desenrolar dos acontecimentos mais morosos, nada que não se justifique adiante, deixando a ação empolgante e o terror encorpado a partir mais ou menos da segunda metade. Destaque para as os diálogos entre o padre Paul e Riley no episódio: “Livro II: Salmos” e entre Erin e Riley no episódio: “Livro IV Lamentações”; o primeiro provocativo e insinuante relativizando a necessidade real de uma fé católica e denunciando a faceta institucional parasitária da igreja, o segundo intenso e emocionante ao refletir a morte num viés materialista e cosmológico ao mesmo tempo. A parceria Mike Flanagan e Netflix prossegue em curva ascendente. Aguardemos o próximo trunfo.


Por: Ábine Fernando Silva


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