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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

O Cidadão Ilustre (2016)

Atualizado: 22 de jan. de 2022

Direção: Gastón Duprat e Mariano Cohn

Roteiro: Andrés Duprat

Elenco principal: Oscar Martínez, Belén Chavanne, Andrea Frigerio, Dady Brieva, Manuel Vicente, Marcelo D'Andrea, Julián Larquier Tellarini.

Oscar Martínez interpreta Daniel Mantovani no filme da dupla Gastón Duprat e Mariano Cohn

“O Cidadão Ilustre”, filme da dupla de realizadores argentinos Gastón Duprat e Mariano Cohn é mais um exemplar de destaque da excelente safra do criativo cinema argentino cuja extraordinária notoriedade mundial teve impulso, sobretudo, a partir dos anos 2000 através de talentos de peso como Juan José Campanella, Pablo Trapero e Damián Szifron. O filme da dupla Duprat e Cohn aborda a crise artística e existencial do escritor argentino Daniel Mantovani (Oscar Martínez), recém premiado com o Nobel de Literatura, porém, profundamente insatisfeito consigo mesmo e com a mediocridade das convenções hipócritas dos nichos acadêmicos e institucionais, haja vista o bloqueio artístico e a impotência criativa que o estagnou, deixando-o indiferente a muitos projetos e obrigações pessoais, levando-o a aceitar espontaneamente, de forma não planejada, um inusitado convite do prefeito da modesta Salas, sua não tão saudosa cidade natal que o receberia de braços abertos com honrosas homenagens e participações em “calorosos” eventos públicos. Instigado ao retornar às suas raízes e quem sabe despertar sua verve criativa adormecida, Mantovani passa a experimentar uma série de contratempos, dissabores, frustrações e conflitos num lugar cujo provincianismo retrógrado sustenta reputações, influências sociais se sobrepõe a ética, assim como as relações pessoais entre a comunidade estão repletas de falsidades, interesses escusos, competições comezinhas e violência. O roteiro de “O Cidadão Ilustre” impregnado de um tom “auto irônico” e “tragicômico” explora a condição do angustiado escritor por meio da confrontação com o passado, das relações entre “civilização e barbárie” que emergem da perspectiva do protagonista acerca de dois espaços distintos (Europa x América do Sul), da reflexão peculiar da “função social do artista e de sua arte” frente aos convencionalismos, aos conchavos e aos padrões políticos conformistas num sentido de ruptura convicta e de denúncia à mediocridade. À medida que o protagonista chega à “simpática” cidadezinha com toda a pompa e reverencia de responsável por imortalizar a pequena província argentina e alguns de seus tradicionais moradores nos anais da literatura mundial, inicia-se uma série de acontecimentos bizarros e situações embaraçosas que subvertem expectativas, uma vez que os desdobramentos dramáticos do primeiro ato sugeria muito mais um mergulho na crise existencial e na angústia do “bloqueio artístico” do literato do que uma jornada regada à contratempos sarcásticos. Daniel Mantovani encontra-se em meio a um turbilhão de eventos que colocam a prova sua lisura ético-moral e suas convicções sobre a vida e a arte, fazendo-o titubear acerca do modesto resquício de memória afetiva e romântica de seu passado naquele povoado. Por outro lado, não há como não levar em consideração a perspectiva contrária de alguns indivíduos do local que encaram o protagonista como um sujeito oportunista, ingrato e traidor que construiu fama e fortuna à custa do lugar e das pessoas a qual ele mesmo teria virado as costas e abandonado.

Daniel Mantovani (Oscar Martínez) calorosamente recepcionado pelos simpáticos moradores de Salas.

O movimento hospitaleiro e cordial vai cedendo espaço à hostilidade e porque não a própria resistência em aceitar um sujeito que não se encaixa na comunidade, não congrega dos mesmos valores, tão europeizado e privilegiado que se tornara (poder-se-ia aludir à metáfora dos marginalizados provincianos contra o opressor cidadão ilustre do primeiro mundo). A excentricidade ingênua, a humildade hospitaleira e o interesse generoso no escritor caem por terra, emergindo ambições individuais, vinganças pessoais e um abuso crescente, o que inevitavelmente suscita o humor cáustico da narrativa, apontando para uma tragicidade iminente. Exceções feitas ao jovem escritor (Julián Larquier Tellarini) que trabalha no hotel em que o literato se hospeda e Irene (Andrea Frigerio), sua antiga paixão de juventude, personagens estes que nutrem um sentimento genuíno e desinteressado por Mantovani. A saída do “ilustre cidadão” baleado literalmente pela porta dos fundos da cidade corrobora a falta de compaixão e a ironia do roteiro com seu herói, mas lhe premia no desfecho com o retorno mais do que bem vindo da “inspiração”, numa dinâmica dos acontecimentos que põe em dúvida inclusive a fidedignidade de toda a história testemunhada pelo expectador (tudo que se assiste poderia ser fruto da pena do próprio escritor que acabava de lançar sua nova obra: “O Cidadão Ilustre”). A força do texto de Andrés Duprat é sentida não só na dramaticidade versátil das representações, mas acima de tudo, nos diálogos inspirados, inteligentes e cômicos. A direção do filme articula muito bem o drama, o humor e a tragédia, transitando com naturalidade entre estes gêneros, estabelecendo enquadramentos muitos próximos, quase intrusivos, por meio do uso de uma câmera amadora que acompanha Daniel Mantovani, sua intimidade, relações sociais e os espaços de Salas, cujas ruas, edificações e rotina oprimem a privacidade, compondo uma paisagem provinciana fidedigna, com fotografias de um realismo banal e corriqueiro (a produção certamente utilizou locações e cenas da vida real dos moradores locais). O longa de Gastón Duprat e Mariano Cohn conta com um elenco sintonizado com o projeto e a naturalidade das interpretações de alguns tipos sociais chamam a atenção principalmente quando se trata do humor. Destaque para a camaradagem disfarçada do limitado e ressentido Antonio (Dady Brieva), para o interesse dissimulado do velhaco prefeito (Manuel Vicente) e para a fúria autoritária e inconsequente do metido a artista plástico Florencio Romero (Marcelo D'Andrea). “O Cidadão Ilustre” é mais um grande filme argentino, realizado com ímpeto artístico sofisticado, capaz de iluminar as trevas da mediocridade cinematográfica e do bloqueio criativo como uma opção mais que original.


Por: Ábine Fernando Silva




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