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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Doutor Fantástico (1964)

Atualizado: 6 de mar. de 2023

Direção: Stanley Kubrick

Roteiro: Stanley Kubrick, Terry Southern e Peter George

Elenco principal: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden, Slim Pickens, James Earl Jones, Peter Bull, Tracy Reed.

Peter Sellers encarna o Dr. Estrangelove no longa de Kubrick

Adaptação livre inspirada no romance “Red Alert” de Peter George, “Doutor Fantástico” ganhou corpo como sátira mordaz sobre as consequências insanas e apocalípticas do fundamentalismo ideológico na alta cúpula do comando estadunidense e soviético em plena Guerra Fria, partindo de uma proposta visionária de reelaboração dramática do conteúdo original capitaneada por Kubrick em parceria com o próprio romancista da obra e com o roteirista Terry Southern, especialista em comédias cáusticas. O elemento tragicômico incisivo da versão kubrickiana lida muito bem com a intensidade criativa da encenação, com a liberdade inventiva das performances e diálogos, valendo-se da tensão como fio condutor de uma trama farsesca e visceral em revelar o absurdo realista da máquina de guerra fetichista e paranoica alimentada por ideologias antagônicas capazes de conduzir lideranças políticas e militares as vias da loucura e da destruição do planeta. Após ordenar unilateralmente um ataque nuclear aéreo sobre território russo, o lunático general Jack Ripper (Sterling Hayden) tenta ser convencido por seu subordinado imediato Capitão Lionel Mandrake (Peter Sellers) a voltar atrás e abortar a ordem catastrófica. Enquanto isso, na sede do Pentágono o presidente dos Estados Unidos Merkin Muffley (Peter Sellers) e seus secretários de Estado, entre eles, o General Buck (George C. Scott) e o cientista bélico Dr. Strangelove (Peter Sellers) entram num impasse insensato sobre uma saída rápida e reversível para a situação. Ainda que o governo americano persiga uma solução viável para a crise convocando para a reunião emergencial o embaixador da União Soviética Botschafter De Sadesky (Peter Bull) e explicando ao presidente russo via telefone o suposto “mal entendido” de um bombardeio prestes a eclodir, o grave e inesperado gesto de Ripper parece ter selado um caminho sem volta para o fim do mundo. O roteiro lapidado por Kubrick, George e Southern ostenta sua faceta tragicômica articulando com eficiência elementos dramáticos mais teatrais, propondo basicamente dois núcleos narrativos recheados de sarcasmo e tensão, e que são ardilosamente administrados ao longo dos noventa minutos de filme. O pano de fundo histórico e realista da Guerra Fria empodera a trama em sua reflexão pessimista e insólita acerca dos efeitos nocivos e desumanizadores de duas visões de mundo contrárias e irredutíveis em suas posições, lançando luz não só à fragilidade da segurança e da burocracia no uso dos armamentos nucleares, mas também, e especialmente, apontando o desequilíbrio mental e a libido destrutiva de certas figuras de poder ironicamente responsáveis pelo controle e destino dos rumos da humanidade. O texto do filme parece achincalhar esse impasse caótico e praticamente irremediável em que se mete Estados Unidos e União Soviética, arrastando consigo miseravelmente o resto do globo, denunciando através do estímulo à gargalhada amarga o perigo fatídico da concentração de poderes bélicos avassaladores nas mãos de sujeitos imbecilizados, virilmente inseguros, megalômanos, paranoicos e fascitóides.

George C. Scott vive o lunático General Buck em "Doutor Fantástico"

O antagonismo sistêmico e ideológico exposto no enredo soa kafkiano, patético e cheio de convenções, haja vista o jogo hipócrita de comadres levado a cabo nos bastidores do alto escalão, propondo-se uma simetria ou aproximação curiosa de interesses inescrupulosos entre o comunismo soviético com sua arma auto programada de extermínio em massa intitulada de “A Máquina do Fim do Mundo” e o capitalismo estadunidense, este zombeteiramente representado como herdeiro consentido do legado nefasto da ciência nazista, personificada pelo maquiavélico e desequilibrado Dr. Strangelove, responsável pelo projeto militar secreto e supremacista do governo americano. Esse viés teatral do roteiro de “Doutor Fantástico” privilegia a perspicácia do improviso, a liberdade criativa e o talento histriônico para a comédia, sobretudo, de Sellers e Scott, pondo em evidencia uma série de equívocos tragicômicos e irremediáveis que se sucedem naturalmente, uma vez que o destemperado e impotente General Ripper coloca seu plano apocalíptico em marcha. Kubrick, Peter George e Terry Southern escancaram o absurdo macabro de uma guerra nuclear iminente recorrendo a uma sátira sombria que toma ares proféticos estarrecedores à medida que evoca uma realidade político-ideológica extra filme. Kubrick junta ao rigor estilístico impecável de sua mise-en-scene, repleto de um formalismo sóbrio e preciso na fotografia em preto e branco, na construção dos planos e no domínio da montagem, a intensidade dramática do texto cômico, irônico e apreensivo, perseguindo uma representação que equilibra a caricatura tipificada da encenação e o realismo dos eventos fatídicos, às vezes, muito bem caracterizados em sequencias objetivas e cruas como a invasão militar do quartel para capturar o amotinado Ripper e o sobrevoo das aeronaves americanas com seus mísseis nucleares. A decupagem do filme busca valorizar as performances individuais e a interação entre os personagens, marcada por diálogos cáusticos e impactantes, construindo uma atmosfera paradoxalmente densa e auto debochada. "Doutor Fantástico” jamais abdica de sua visão hilária, pessimista e sombria dos meandros que conduzem à guerra e, sobretudo, daquelas figuras desprezíveis jocosamente imbuídas de um poder desproporcional que caprichosamente acaba condenando a extinção toda raça humana. Kubrick satiriza o absurdo da Guerra Fria esfregando nas nossas caras os efeitos nocivos das crenças irracionais, condicionadas por mentalidades masculinas inseguras e obcecadas por violência, egocêntricas e doentias, captando em sua obra uma espécie de verdade trágica, sinistra e atemporal sobre certos aspectos do modus operandi do poder político e da governança.


Por: Ábine Fernando Silva

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