Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick, Terry Southern e Peter George
Elenco principal: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden, Slim Pickens, James Earl Jones, Peter Bull, Tracy Reed.
Adaptação livre inspirada no romance “Red Alert” de Peter George, “Doutor Fantástico” ganhou corpo como sátira mordaz sobre as consequências insanas e apocalípticas do fundamentalismo ideológico na alta cúpula do comando estadunidense e soviético em plena Guerra Fria, partindo de uma proposta visionária de reelaboração dramática do conteúdo original capitaneada por Kubrick em parceria com o próprio romancista da obra e com o roteirista Terry Southern, especialista em comédias cáusticas. O elemento tragicômico incisivo da versão kubrickiana lida muito bem com a intensidade criativa da encenação, com a liberdade inventiva das performances e diálogos, valendo-se da tensão como fio condutor de uma trama farsesca e visceral em revelar o absurdo realista da máquina de guerra fetichista e paranoica alimentada por ideologias antagônicas capazes de conduzir lideranças políticas e militares as vias da loucura e da destruição do planeta. Após ordenar unilateralmente um ataque nuclear aéreo sobre território russo, o lunático general Jack Ripper (Sterling Hayden) tenta ser convencido por seu subordinado imediato Capitão Lionel Mandrake (Peter Sellers) a voltar atrás e abortar a ordem catastrófica. Enquanto isso, na sede do Pentágono o presidente dos Estados Unidos Merkin Muffley (Peter Sellers) e seus secretários de Estado, entre eles, o General Buck (George C. Scott) e o cientista bélico Dr. Strangelove (Peter Sellers) entram num impasse insensato sobre uma saída rápida e reversível para a situação. Ainda que o governo americano persiga uma solução viável para a crise convocando para a reunião emergencial o embaixador da União Soviética Botschafter De Sadesky (Peter Bull) e explicando ao presidente russo via telefone o suposto “mal entendido” de um bombardeio prestes a eclodir, o grave e inesperado gesto de Ripper parece ter selado um caminho sem volta para o fim do mundo. O roteiro lapidado por Kubrick, George e Southern ostenta sua faceta tragicômica articulando com eficiência elementos dramáticos mais teatrais, propondo basicamente dois núcleos narrativos recheados de sarcasmo e tensão, e que são ardilosamente administrados ao longo dos noventa minutos de filme. O pano de fundo histórico e realista da Guerra Fria empodera a trama em sua reflexão pessimista e insólita acerca dos efeitos nocivos e desumanizadores de duas visões de mundo contrárias e irredutíveis em suas posições, lançando luz não só à fragilidade da segurança e da burocracia no uso dos armamentos nucleares, mas também, e especialmente, apontando o desequilíbrio mental e a libido destrutiva de certas figuras de poder ironicamente responsáveis pelo controle e destino dos rumos da humanidade. O texto do filme parece achincalhar esse impasse caótico e praticamente irremediável em que se mete Estados Unidos e União Soviética, arrastando consigo miseravelmente o resto do globo, denunciando através do estímulo à gargalhada amarga o perigo fatídico da concentração de poderes bélicos avassaladores nas mãos de sujeitos imbecilizados, virilmente inseguros, megalômanos, paranoicos e fascitóides.
O antagonismo sistêmico e ideológico exposto no enredo soa kafkiano, patético e cheio de convenções, haja vista o jogo hipócrita de comadres levado a cabo nos bastidores do alto escalão, propondo-se uma simetria ou aproximação curiosa de interesses inescrupulosos entre o comunismo soviético com sua arma auto programada de extermínio em massa intitulada de “A Máquina do Fim do Mundo” e o capitalismo estadunidense, este zombeteiramente representado como herdeiro consentido do legado nefasto da ciência nazista, personificada pelo maquiavélico e desequilibrado Dr. Strangelove, responsável pelo projeto militar secreto e supremacista do governo americano. Esse viés teatral do roteiro de “Doutor Fantástico” privilegia a perspicácia do improviso, a liberdade criativa e o talento histriônico para a comédia, sobretudo, de Sellers e Scott, pondo em evidencia uma série de equívocos tragicômicos e irremediáveis que se sucedem naturalmente, uma vez que o destemperado e impotente General Ripper coloca seu plano apocalíptico em marcha. Kubrick, Peter George e Terry Southern escancaram o absurdo macabro de uma guerra nuclear iminente recorrendo a uma sátira sombria que toma ares proféticos estarrecedores à medida que evoca uma realidade político-ideológica extra filme. Kubrick junta ao rigor estilístico impecável de sua mise-en-scene, repleto de um formalismo sóbrio e preciso na fotografia em preto e branco, na construção dos planos e no domínio da montagem, a intensidade dramática do texto cômico, irônico e apreensivo, perseguindo uma representação que equilibra a caricatura tipificada da encenação e o realismo dos eventos fatídicos, às vezes, muito bem caracterizados em sequencias objetivas e cruas como a invasão militar do quartel para capturar o amotinado Ripper e o sobrevoo das aeronaves americanas com seus mísseis nucleares. A decupagem do filme busca valorizar as performances individuais e a interação entre os personagens, marcada por diálogos cáusticos e impactantes, construindo uma atmosfera paradoxalmente densa e auto debochada. "Doutor Fantástico” jamais abdica de sua visão hilária, pessimista e sombria dos meandros que conduzem à guerra e, sobretudo, daquelas figuras desprezíveis jocosamente imbuídas de um poder desproporcional que caprichosamente acaba condenando a extinção toda raça humana. Kubrick satiriza o absurdo da Guerra Fria esfregando nas nossas caras os efeitos nocivos das crenças irracionais, condicionadas por mentalidades masculinas inseguras e obcecadas por violência, egocêntricas e doentias, captando em sua obra uma espécie de verdade trágica, sinistra e atemporal sobre certos aspectos do modus operandi do poder político e da governança.
Por: Ábine Fernando Silva