Direção: John Carpenter
Roteiro: Bill Lancaster
Elenco principal: Kurt Russell, A. Wilford Brimley, T. K. Carter, David Clennon, Keith David, Richard Dysart, Charles Hallahan, Peter Maloney, Richard Masur, Donald Moffat, Joel Polis, Thomas Waites.
Refilmagem de “O Monstro do Ártico” (1951) de Christian Nyby,“O Enigma de Outro Mundo”, lançado em 1982 e dirigido por John Carpenter parece buscar inspiração para sua adaptação cinematográfica muito menos no sci-fi cinquentista e muito mais no conceito de horror lovecraftiano presente no conto “Nas Montanhas da Loucura” de 1936. Não é novidade também para os fãs de “Alien, o 8º Passageiro” (1979) que a construção do seu terror alienígena e claustrofóbico é tributário das páginas do escritor de Providence, ao passo em que o longa de Carpenter acabou exageradamente estigmatizado por supostamente "plagiar" o conceito de Scott , mas, sem o devido êxito. Embora “O Enigma de Outro Mundo” tenha sido um fracasso de crítica e bilheteria na época do seu lançamento, a passagem do tempo e mudanças substanciais nos valores de julgamento estético da produção acabaram fazendo jus as suas verdadeiras qualidades, transformando-a numa espécie de referência cult do gênero, ovacionada pela cinefelia das décadas seguintes. Uma equipe de cientistas e auxiliares de uma base americana na Antártica são repentinamente surpreendidos por dois atiradores noruegueses de outra base nas redondezas tentando alvejar um cão numa caçada insana pelo gelo. Após o rápido e misterioso embate resultando na morte dos ensandecidos vizinhos nórdicos, o grupo formado por diversos profissionais, entre eles, o piloto R.J. MacReady (Kurt Russel), o médico Dr. Cooper (Richard Dysart), o mecânico Childs (Keith David) e o biólogo Dr. Blair (Wilford Brimley) descobrem que estão sob a ameaça de um organismo alienígena altamente contagioso, trazido pelo cachorro acolhido no canil e capaz de assumir a forma física do seu hospedeiro. Um clima de desconfiança e paranoia rapidamente se instaura no local, forçando homens completamente isolados a lutarem pela sobrevivência, tentando garantir que a “coisa” não ultrapasse os limites inóspitos da vastidão glacial. A trama de “O Enigma de Outro Mundo” se alinha a uma tradição de filmes cuja proliferação criativa conheceu solo fértil a partir dos anos de 1950 com a escalada vertiginosa das tensões políticas e sociais da Guerra Fria. Nesse sentido, as narrativas sobre invasões alienígenas, já bastante difundidas na produção cultural estadunidense, pareciam traduzir uma espécie de insegurança paranoica e pavor coletivo, encontrando no cinema de massas a distensão emocional e escapista ideais em relação à representação da ameaça do “outro”, daquele que vem de fora, do “estrangeiro” usurpador, tal qual se verificam nos longas “A Guerra dos Mundos”, 1953 de Byron Haskin e “Vampiros de Almas”, 1956 de Don Siegel. O texto de Bill Lancaster bebe dessas fontes fílmicas sólidas e já consagradas pelo grande público, mas, concentra sua força dramática na manifestação de um horror gráfico espetacular e irracional, capaz de desorientar e oprimir as mentes científicas e pragmáticas, circunscritas, além do mais, ao isolamento físico e a condições inclementes de temperatura.
A perda de controle, o clima de desconfiança generalizado, assim como a resposta impulsiva e violenta dos sujeitos vulneráveis ao domínio de uma força extraterrestre desconhecida revela certo “olhar” trágico e pessimista de Carpenter sobre as competências da coletividade masculina ao lidar com o estresse e o caos de situações limítrofes, ressaltando, na esteira de uma longa tradição intimamente ligada à fantasia e a ficção científica, a problemática do azar e da imprudência humana em atropelar limites ético-morais na relação com a natureza, despertando o mal e causando a própria desgraça. O enredo se desenvolve apostando numa progressão gradativa do suspense, desde a tentativa urgente e meio incerta dos pesquisadores em entender a forma e o comportamento hostil do vírus alienígena, até uma intensificação generalizada da paranoia no interior da base, colocando uns contra outros e deixando todos ao mesmo tempo sob suspeita, uma vez que o organismo invasor toma o corpo da vitima e seu lugar no mundo, assimilando literalmente seu fenótipo. Ora, o medo relativo à anulação biopsíquica e a perda da autonomia individual proporcionada pela “coisa” reeditam a metáfora social da ficção científica ideologizada pela Guerra Fria, interessada nos efeitos terríveis de um possível domínio estrangeiro comunista, no entanto, a narrativa de Carpenter é muito competente em “amarrar” esse clichê conceitual ao impacto do horror visual e grotesco, explorado pela metamorfose lenta, repugnante e asquerosa de uma criatura que quando confrontada assume uma estética bizarra, convertendo-se numa amálgama disforme dos seres assimilados. Embora as semelhanças entre os enredos de Carpenter e Scott sejam enormes, chamando a atenção, em especial, o confinamento claustrofóbico dos personagens e o potencial da letalidade e da ameaça civilizatória da “Coisa” e do “Xenomorfo”, há que se destacar o investimento dramático intenso de “O Enigma de Outro Mundo” no suspense psicológico e numa trama mais ambígua e especulativa, conferindo ao heroísmo de seu protagonista MacReady uma áurea irônica e sombria, emprestando ao longa, de maneira geral, um sabor trágico e pessimista. A direção alcança seus grandes momentos ao explorar a instabilidade emocional e a reação masculina violenta frente a um inimigo estranho e invasivo, articulando uma atmosfera hostil e apreensiva através de uma estilística moderna e dinâmica que aproveita bem o potencial cenográfico da condição de isolamento (o deserto glacial antártico e as dependências internas da base), a tensão dramática das interações coletivas e as “marteladas” opressivas da trilha minimalista de Morricone para adensar o suspense e o terror. John Carpenter propõe ao espectador o voyeurismo obsceno do fenômeno grotesco, diversificando e alongando as sequências mais trash, perseguindo o impacto visual e cinematográfico da essência literária do horror lovecraftiano, calcado no fascínio, na repugnância e na impotência diante do “abominável”. Esse aspecto monumental e “hediondo” assumido pela criatura alienígena em diversas cenas do filme tornou-se icônico e memorável, sobretudo, pelo trabalho criativo e artesanal dos efeitos especiais de Rob Bottin, cuja passagem do tempo e a revolução moderna dos CGI em nada desabonaram, ao contrário, só elevaram a experiência da produção a um patamar bastante original na história dos efeitos técnicos do cinema de terror. “O Enigma de Outro Mundo” superou a incompreensão de seu tempo e a concorrência um tanto desleal com uma série de superproduções do gênero de teor mais digerível e convencional, lançadas no mesmo contexto. O engenho criativo, a ousadia narrativa e o senso visionário provaram, no fim das contas, que John Carpenter estava certo.
Por: Ábine Fernando Silva
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