Direção: Jerry Schatzberg
Roteiro: Garry Michael White
Elenco principal: Gene Hackman (Max), Al Pacino (Lion), Dorothy Tristan (Coley), Ann Wedgeworth (Frenchy).
“O Espantalho” de Jerry Schatzberg figura entre as mais importantes produções do cinema norte-americano do início dos anos de 1970 cuja estética narrativa inovadora associada às temáticas críticas no âmbito social e cultural marcou notoriamente o que se identifica como a gênese da Nova Hollywood, uma série difusa, criativa e eclética de diversas manifestações cinematográficas, influenciadas, sobretudo, por movimentos expressivos do cinema europeu como o Neorrealismo Italiano e a Nouvelle Vague. Road movie anticonvencional focado na vida de dois sujeitos marginalizados, porém, confiantes nas insuspeitas promessas falaciosas do “sonho americano”, o longa do cineasta nova-iorquino articula humor e drama de forma espontânea, orgânica e sensível, sem perder de vista o elemento trágico inerente ao mundo hostil e inexorável que envolve o ex-marinheiro Francis Lionel Delbuchi (Al Pacino) e o ex-presidiário Max Millan (Gene Hackman), duas existências antagônicas e complementares que o destino une por meio de um laço afetivo tácito, sincero e genuíno. O enredo do filme acompanha esses dois andarilhos que se conhecem por acaso numa estrada californiana, tornam-se amigos e decidem fundar juntos, um negócio no ramo de lavagem de carros. É desta forma que o expectador acaba conhecendo um pouco mais da personalidade destoante dos protagonistas, assim como de seus passados desonrosos e traumáticos, embarcando numa jornada emocionante, solidária, fraterna e verdadeira empreendida por homens humildes e sonhadores que cruzam os Estados Unidos entre caronas, caminhadas e viagens de trem, experimentando confusões, descobertas e aprendizados, mas, sobretudo, buscando recomeços. O roteiro de Garry Michael White desenvolve as peripécias de retorno e redenção interessado em explorar constantemente a comicidade espontânea e o drama, desnudando gradativamente as personalidades, as reações e o caráter de Max e Lion no compasso do anseio pela concretização de seus significativos planos individuais e frente aos constantes obstáculos do cotidiano, sutilmente chamando à atenção para o desarranjo entre as singelas aspirações dos desajustados e o mundo austero que lhes fecha a porta, escasseando suas oportunidades. Desta forma, os inusitados companheiros, confiantes e otimistas, parecem não perceber o caráter implacável e excludente do sistema social subsidiado pela máxima do empreendedorismo e pela dissimulada utopia de “terra das oportunidades”, aspectos que o roteiro de White desmistifica e desconstrói no retrato da própria condição pobre e estagnada dos personagens de Hackman e Al Pacino. Sendo assim, o temperamento ranzinza e explosivo, o descontrole e o antecedente criminal de um, somados à irresponsabilidade ingênua, a irreverência, a falta de recursos financeiros e a lassidão vadia do outro, constituem identidades e modos de existência fadados de antemão ao fracasso, muito embora o projeto da fundação de um lava-rápido e o desejo de reconciliação familiar, torne-se uma obsessão teimosa e meio alheia à realidade, impulsionando ambos a provarem sua capacidade, valor, honra e amadurecimento.
Schatzberg privilegia o jogo das interações dramáticas do elenco, carregadas de sensibilidade, intensidade performática e diálogos emotivos, ressaltando não só a influência mútua entre os personagens, como também o aprofundamento de uma relação de amizade tão sincera, verdadeira e desinteressada que no fim das contas “erige” uma espécie de muro contra a hostilidade do mundo, um refúgio e alento no palco de uma história forjada no drama amargo da sobrevivência, cujo tom meio aventureiro e burlesco articulado com certa constância e advindo, sobretudo, do jeitão brincalhão e infantil do espantalho de Lion, não arrefece a tendência melancólica e trágica concorrentes. Aliás, o desfecho da trajetória da dupla pode ser encarado tanto pelo seu viés negativo (o choque traumático de Lion ao descobrir a suposta morte do filho abandonado), quanto pelo maravilhoso exemplo da prova de amor e cuidado manifestados pelo sacrifício e pelo nobre gesto de Max, disposto a utilizar toda a grana do seu tão sonhado negócio para ajudar a recuperar a saúde do inestimável parceiro. O estudo de personagem proposto pelo longa encontra rescaldo no jogo das influencias recíprocas desenvolvidas pela trama, evidenciando aprendizados e transformações de caráter e comportamento que vão muito além da mera companhia, da cumplicidade e da solidariedade durante a jornada dos desajustados, portanto, o ex-presidiário durão e briguento aprende a ser um pouco de “espantalho”, amansando seus instintos e permitindo-se um modo menos severo e amargo de lidar com os problemas, da mesma forma que o irresponsável ex marinheiro amadurece, enxergando a malícia do mundo e a necessidade de encará-lo sem covardia. O apuro visual e poético do filme construído através de planos abertos contemplativos, com uma câmera sensível, discreta, de angulação mais fixa e movimentada em travellings pontuais e expressivos encontra vazão na captação sincera da encenação e na construção natural, crua e realista das interpretações de Al Pacino e Gene Hackman, respaldadas pela delicada direção de atores de Schatzberg. A impressão de realismo é sentida pela escolha de uma abordagem meio documental às vezes, como se o diretor deixasse a câmera ligada e captasse de forma direta e verdadeira certos momentos oportunos, sobretudo, àqueles que soam mais ensaiados, improvisados e caricatos. Tal escolha sustenta muito bem a proposta dramática da obra, seja pela continuidade narrativa de planos longos e com poucos cortes, seja pela beleza lírica da fotografia de Vilmos Zsigmond cobrindo espaços naturais (circunscritos e amplos) com sua acurada profundidade de campo ou mesmo pela ausência de trilha (exceção feita ao tema folk, com instrumentos de sopro e precursão), exaltando e promovendo uma “ode à amizade”, recompensa valorosa e imensurável ao final da odisseia dos humildes “espantalhos”. “O Espantalho” é uma história grandiosa sobre amizade, esperança, confiança e sacrifício, experimentada por dois destemidos marginalizados no seio da moderna, insensível e sofismática pátria capitalista norte-americana. Embora este trabalho de Jerry Schatzberg seja pouco badalado e muitas vezes esquecido pelo público em geral, certamente possui a vitalidade e o peso de uma peça cinematográfica imprescindível, reunindo dois dos melhores e maiores talentos da Nova Hollywood dos anos 70.
Por: Ábine Fernando Silva
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