Direção: Willian Fredkin
Roteiro: William Peter Blatty
Elenco principal: Ellen Burstyn, Jason Miller, Max von Sydow, Linda Blair, Lee J. Cobb
Disponível: HBO Max
“O Exorcista” (1973) de Willian Fredkin deixou sua marca na história do cinema de terror como um dos filmes mais perturbadores e controversos já produzidos por Hollywood e muito de sua fama mitológica, adensada ao longo do tempo, deu-se graças a uma ardilosa estratégia de marketing promovida pelos produtores, bastante empenhados em lucrar com todo sensacionalismo midiático que certamente se reproduziria em torno do conteúdo sensível e polêmico da obra. A adaptação do romance homônimo de William Peter Blatty representou um marco para a indústria do blockbuster moderno, alinhando uma série de inovações estéticas oriundas do bojo da Nova Hollywood a um gênero tradicionalmente subestimado pela própria academia. Após se mudar para o novo lar em Georgetown, a atriz Chris MacNeil (Ellen Burstyn) passa a testemunhar perplexa uma série de perturbações físicas e psicológicas que gradualmente tomam de assalto sua filha de 12 anos. Cada vez mais desesperada devido às arrebatadoras crises da jovem Regan (Linda Blair) e completamente aturdida pela impossibilidade de um diagnóstico médico plausível, a incansável mãe, embora alheia à religião, decide buscar a ajuda do padre e psiquiatra Damien Karras (Jason Miller), autorizando-lhe a consumação de um exorcismo. Mesmo abalado em suas convicções teológicas e sentindo-se culpado pela recente morte da mãe, o cético jesuíta acaba se compadecendo dos sofrimentos das MacNeil, aceitando realizar o famigerado “ritual romano” com o aval da Igreja Católica e sob as orientações do veterano padre e arqueólogo Lankester Merrin (Max von Sydow). Inicia-se uma extenuante batalha entre o bem e o mal pela vida da inocente garotinha. O roteiro tecido por Blatty carrega o rigor perfeccionista de Fredkin, seja quando propõe uma série de ambiguidades sobre a natureza dos tormentos arrebatadores de Regan e o dilema dos personagens (Chris, Karras e Merrin), ou mesmo quando retrata de forma intensa o drama perturbador e o terror acachapante e gradativo no interior do lar das MacNeil. A trama sinuosa do longa avança rejeitando, por tempo considerável, evidencias diretas que justifiquem de maneira clara a repentina transformação doentia e deplorável da garota, recorrendo à sugestões e insinuações, reforçando a faceta misteriosa do fenômeno e potencializando, o que tal vez seja uma das grandes reflexões propostas pela obra: o embate entre espiritualidade e ciência, entre fé e razão no esplendor da era moderna. Se por um lado, o prólogo sinistro e sugestivo do filme pressagiando a derradeira batalha entre Merrin e a divindade suméria Pazuzu (demoníaca para os cristãos), assim como as brincadeiras de Regan com uma “Tábua Ouija” encontrada no porão da residência, além da recorrência de uma série de profanações na catedral de Georgetown tendem a apontar para a influência de uma provável força demoníaca e sobrenatural agindo no local, por outro lado, o divórcio da mãe, a solidão da menina, além do comportamento descrente e não religioso de ambas reforçam a tese mais racional de um possível transtorno de natureza psicoemocional.
O terror realista de Fredkin explora, portanto, o drama trágico de um fenômeno que soa absurdo e aparentemente sem respostas, evidenciando com muita perspicácia contextual a existência de um ambiente urbano, moderno e “dessacralizado”, cujas próprias autoridades eclesiásticas se mostram dispostas a resistir a certos princípios e justificativas sobrenaturais. A mentalidade meio incrédula e a crise espiritual do taciturno Karras parecem corroborar esse “anacronismo” ideológico e o “distúrbio” dogmático experimentado pela fé cristã em pleno século XX. Não obstante, a possessão da jovem se converte numa espécie de “provação”, verdadeiro teste cerebral e enervante para o personagem relutante de Miller que pressionado pelas circunstâncias acaba aderindo a um ritual arriscado e questionável, ao passo em que se defronta perplexo com a dimensão absurda, aleatória e covarde de um mal insidioso que perturba seus interlocutores e tortura a exaustão a inocente criança. O texto de Blaty bastante consciente do impacto da linguagem visual explora os meandros da metamorfose física e psicológica de Regan, lançando mão de uma intensa carga emocional nos gestos e ações da personagem, permitindo-se conjecturas dramáticas cada vez mais ousadas e escandalosas à medida que a historia avança trazendo a tona um ethos demoníaco ardiloso, profano e lascivo, provocando o espectador no âmago de suas próprias crenças e valores ao desafiar tabus sociais e religiosos, o que para além da sensação de medo e desconforto, tende a suscitar a repulsa e a indignação. Aliás, o trunfo cinematográfico de “O Exorcista” advém e muito da sua qualidade dramatúrgica, do cuidado metódico na construção realista da encenação e na representação sincera e dolorosa dos dilemas, conflitos e sofrimentos, sobretudo, no que diz respeito às figura de Chris, Karras e Regan. A direção moderna e realista do longa absorve com naturalidade o viés intimista dos personagens e de suas relações, chamando à atenção para a profundidade do drama, a impetuosidade enérgica das performances e a construção de uma atmosfera misteriosa e sombria, amparada pela percepção rigorosa e sensível das lentes do fotógrafo Owen Roizman. O virtuosismo do trabalho de Willian Fredkin encontra vazão, portanto, em diversos elementos de sua estilística: o perfeccionismo da dinâmica de planos mais clássicos e modernos, a concepção de um ritmo narrativo envolvente e gradativamente angustiante, o controle absoluto da cena na direção dos atores, a engenharia macabra da mixagem de som das vozes, gemidos e vitupérios de Regan e, especialmente, a atenção obsessiva ao aspecto gráfico do terror, sutilmente induzido nas breves inserções subliminares da carranca de Pazuzu durante o processo de edição e traduzido pela espetacularização sinistra e hedionda da possessão, cuja tônica dos efeitos especiais e da maquiagem sublinham a violência afrontosa da entidade e a degradação física, sádica e asquerosa do corpo da menina. O valor estético e a importância audiovisual de “O Exorcista” de Fredkin tornaram-se incomensuráveis para a história do cinema e, particularmente, para o terror, uma vez que o reconhecimento da academia via indicações e premiações do Oscar (Melhor Som e Melhor Roteiro Adaptado) permitiu ao gênero um olhar menos tendencioso e arrogante por parte da crítica. O impacto universal e atemporal da obra jamais poderá ser “exorcizado” do imaginário cultural e social do Cinema.
Por: Ábine Fernando Silva.
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