Direção: Robert Eggers
Roteiro: Robert Eggers, Max Eggers
Elenco principal: Thomas Howard (Willem Dafoe), Thomas Wake (Willem Dafoe)
Construída como uma lúgubre e sombria narrativa de horror psicológico, “O Farol” congrega qualidades estilísticas que somadas à suas propostas temáticas consegue entregar ao espectador uma obra de arte ímpar e que possui a capacidade de infligir desconforto, insegurança e dúvidas, gerar expectativa e abalar nosso julgamento acerca da fidedignidade dos eventos que nos envolvem sorrateiramente. O roteiro assinado pelo próprio Eggers e seu irmão (Max) lança mão de um enredo bastante simples, propondo, contudo, reflexões arrebatadoras sobre a vida em isolamento, sobre condições humanas precárias, perda gradativa de sanidade, disputa pelo poder, carência emocional, autoritarismo, culpa, subalternidade, solidão, insurreição, etc. O mergulho nas questões psicológicas de dois sujeitos opostos, porém espelhados, ocorre com parcimônia que se agiganta, dando-se ênfase as interações, ao jogo das relações interpessoais, a uma concorrência muitas vezes não expressa e que, no entanto, traduz-se nos choques diretos ou indiretos (cabe mencionar que o texto preconiza a perspectiva do personagem de Pettinson). Além do mais, evidencia-se a utilização de simbologias mitológicas e literárias pertinentes no interior dos diálogos e monólogos poéticos, a conjugação dos indivíduos com o meio natural que os rodeia (que também se manifesta como um personagem) tornando ainda mais complexa esta história que também pode ser entendida como um processo de tentativa de reinvenção pessoal ou de revolta amargurada contra a opressão. Ambientada no final do século XIX (provavelmente) a trama acompanha a trajetória do aspirante a faroleiro Thomas Howard (Robert Pattinson), recém-chegado a uma ilha pedregosa e inóspita que sustenta um portentoso farol, para auxiliar o experiente e excêntrico Thomas Wake (Willem Dafoe) nas tarefas de zeladoria e manutenção das instalações locais. À medida que a narrativa de Robert Eggers vai minuciosamente se desdobrando, uma atmosfera de mistério, inquietude e perturbação se solidifica dada a perspicácia e profusão que a direção atinge ao “transformar” o ambiente isolado e claustrofóbico em uma espécie de terceira persona que se banqueteia dos choques, conflitos e demônios pessoais dos sujeitos alheados, metidos ali num esgarçado e sufocante devaneio particular (os planos sequências dos ambientes fechados e os enquadramentos externos panorâmicos dão a dimensão disto). O uso de uma câmera lenta, discreta e intrusiva desnuda gradativamente as personalidades de homens aparentemente díspares, mas que deixam franjas de um espelhamento psicológico que vai se consolidando ao longo da história (há uma lenta e progressiva mudança nos papéis, independentemente dos motivos). O emparelhamento e as transições das dimensões da realidade, sonho e alucinações trazem para a cinematografia de Eggers o melhor que o surrealismo pode oferecer, apagando as pistas da realidade ou da fantasia, com sequências rítmicas que deixam o espectador sempre com a “pulga atrás da orelha”. A fotografia estilizada em preto e branco de Jarin Blaschke, é oportunamente explorada como um retrato da degeneração e da devastação interna e externa aos personagens, utilizando-se de efeitos extraordinários de luz e sombra, remetendo diretamente ao “Expressionismo Alemão” (a cena do velho Thomas Wake embriagado e vociferando um monólogo amaldiçoado ao seu subordinado tem enquadramento em contra-plongeé e iluminação estilizada, realçando uma sombra sinistra e fantasmagórica).
O filme ainda conta com uma mixagem de som incisiva e envolvente, condensada por uma energia hipnótica que arrebata os protagonistas, causando incômodo, frisson e perturbação (a sirene em diapasão é enlouquecedora). Essa mixagem de som nítida e coesa (o barulho do vento, do mar, dos pássaros, dos roncos e peidos do velho Tom são absurdamente realistas) principalmente no que diz respeito aos ruídos externos, nos dá a impressão de que a ilha está viva, que natureza primitiva e revoltosa irá tragar os insignificantes faroleiros (o que quase se concretiza com a tempestade que provavelmente dura dias). Em se tratando do design de produção, o longa possui um capricho bastante sóbrio e circunspecto, estabelecendo metáforas e analogias entre os os elementos do ambiente e o estado físico, mental e espiritual dos personagens. O farol, fonte de luz e mecanismo que constrói em torno de si uma áurea enigmática e mágica, tornando-se objeto de cobiça e disputa entre Thomas Wake e Thomas Howard suscita reflexões complexas e profundas que vão desde a representação da luz inebriante como fonte de calor e vida, satisfação psicológica e íntima que redime as trevas em que os dois homens se encontram mergulhados, como também espécie de símbolo de poder fálico, status e distinção, numa alusão sinistra ao mito grego de Prometeu (o velho faroleiro é relutante em não permitir que o jovem zelador se aproxime da fonte de luz do farol). A sereia talhada na madeira e o pássaro caolho (supostamente possuído pelo espírito do ex-ajudante do velho Tom) são exemplos de outros elementos semânticos que condensam o universo mítico do filme, da mesma forma que as referências aos clássicos literários que abordam a loucura e a obsessão humanas em alto-mar (Moby Dick, Herman Melville e O Lobo do Mar, Jack London). Sobre as performances, Willem Dafoe e Robert Pattinson estão inspirados e mergulhados de cabeça em seus papéis, haja vista que o roteiro do filme se sustenta numa trama teatralizada e que exige a desenvoltura e a intensidade dramática de ambos. Dafoe está sarcástico e dissimulado, rabugento e tirano, oscilando para uma simpatia e bom humor de ocasião (sob o efeito do álcool). Seus gestos, fisionomias e falas imprimem a energia de cada situação, sempre deixando entrever certa perspicácia e inteligência emocional para se adiantar ao seu ajudante. Sua relação complexa com Thomas Howard tem no horizonte sua posição hierárquica e seu poder absoluto que descamba em opressão, humilhação e pura arbitrariedade. Conforme o enredo passa a tomar determinados rumos, a figura do velho calhorda, soberbo e beberrão vai se apequenando, acovardando-se sob a ameaça revoltosa do jovem Thomas, chegando ao ponto de sujeitar-se a condição de um cão sendo guiado por uma coleira improvisada (inversão radical de papéis). Já Robert Pattinson encarna o sujeito em reconstrução (sabemos disto no decorrer do filme), focado em seguir as ordens e não se meter em problemas (descobrimos que o personagem é assolado pela culpa da morte de Ephraim Winslow, um desafeto com quem trabalhava), cuja postura, gestos e falas demonstram sua subserviência e autocontrole em não se desestabilizar frente às oscilações constantes de humor e autoritarismo de seu superior (a princípio). É justamente por testemunharmos a perspectiva do personagem vivido por Pattinson que em certo momento emerge nossa suspeita acerca da plausibilidade dos eventos experenciados pelo jovem, acometido por visões fantásticas e delírios (ou não?), o que coloca em xeque, inclusive, a própria existência da figura do velho Thomas Wake, reforçando a tese de um enervante processo de alienação que vai surrupiando a mente do rapaz. O ato de rebelião, subversão dos papéis e aniquilamento do velho tirano (que recomendara o cancelamento do pagamento pelos serviços de seu ajudante), finalmente impulsiona o então transfigurado Thomas Howard a vislumbrar e tocar pessoalmente o farol, símbolo de veneração e poder tão caro àquelas duas miseráveis vidas circunscritas a uma existência limítrofe. A consequência de tal ato sugere um desfecho nefasto, punitivo e irreversível da trama, já que assistimos atônitos aos pássaros alimentando-se do corpo nu de Thomas Howard que jaz sob as pedras da praia. “O Farol” entra para o rol daquelas obras marcantes, intrigantes e sugestivas, de grande esmero estilístico e alcance estético, capaz de suscitar muitas reflexões e debates, convidando, inevitavelmente, o espectador a instigantes revisitas.
Por: Ábine Fernando Silva
Excelente análise! Corresponde à virtuosidade deste que é um dos melhores filmes aos quais assistimos neste horripilante ano de 2020 (embora vejamos acender, ao longe, o farol de novos possíveis tempos com as eleições municipais em São Paulo). Enredo fascinante, personagens multifacetadas e estética deslumbrante – enriquecida a partir de metáforas com seres mitológicos, como Medusa, Netuno e greias –, aspectos muito bem abordados na reflexão sobre a obra. Vida longa ao Bonde Cinema! Peguem carona no bonde!!!