O GÃĒngster (2007)
- Ãbine Fernando Silva
- 22 de abr. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 24 de abr. de 2024
DireçÃĢo: Ridley Scott
Roteiro: Steven Zaillian (baseado no: The Return of Superfly de Mark Jacobson)
Elenco principal: Bumpy (Clarence Williams III), Frank Lucas (Denzel Washington), Richie Roberts (Russell Crowe), Huey Lucas (Chiwetel Ejiofor), Mama Lucas (Ruby Dee), Detective Trupo (Josh Brolin), Nicky Barnes (Cuba Gooding Jr.).

Baseado na histÃģria real de Frank Lucas, o grande chefÃĢo do trÃĄfico de heroÃna do Harlem nos 70, âO Gangsterâ persegue a grandiloquÊncia ÃĐpica das grandes produçÃĩes de renome que se propuseram explorar a complexidade polÃtica, social e humana do universo violento, glamoroso, paranoico e decadente das grandes famÃlias mafiosas. Ainda que o projeto de Scott nÃĢo alcance a dimensÃĢo estÃĐtica dos grandes clÃĄssicos do gÊnero como âO Poderoso ChefÃĢo, 1972, Francis Ford Copollaâ, âScarface, 1983, Brian de Palmaâ ou âOs Bons Companheiros, 1990, Martin Scorseseâ, sua identidade temÃĄtica, produçÃĢo ostentosa e elenco formidÃĄvel chama a atençÃĢo em se tratando de ambiçÃĢo cinematogrÃĄfica. A relevÃĒncia temÃĄtica concentrada na transiçÃĢo, ascensÃĢo, domÃnio e consequente declÃnio do impÃĐrio do trÃĄfico em Nova York, encabeçado pelo ex-motorista negro Frank Lucas (Denzel Washington), assim como a sugestÃĢo histÃģrica desestabilizadora e polÊmica acerca da participaçÃĢo ativa de setores do exÃĐrcito norte-americano no translado de heroÃna do oriente para os Estados Unidos, durante a âGuerra do VietnÃĢâ, jÃĄ sÃĢo elementos mais do que convidativos e imprescindÃveis deste recorte ficcional conturbado dos Estados Unidos em pleno auge da Guerra Fria. O enredo do filme se debruça sobre a vida do discreto mordomo/motorista Frank que apÃģs a morte do patrÃĢo, mentor e referÊncia criminosa Bumpy (Clarence Williams III) assume os negÃģcios escusos no Harlem ao passo que galga de maneira meteÃģrica os altos patamares do trÃĄfico de âblue magicâ (heroÃna pura), estabelecendo contatos e negÃģcio direto com um grande produtor da droga na TailÃĒndia e fazendo-a escoar para os Estados Unidos em aviÃĢo militar, atravÃĐs do suborno de oficiais do exÃĐrcito acampados na regiÃĢo durante o conflito armado no VietnÃĢ. Concomitante ao arco do gangster, acompanhamos tambÃĐm a trajetÃģria do detetive Richie Roberts (Russell Crowe), sujeito impetuoso e destemido no combate ao crime, aspirante a promotoria, convicto de sua lisura ÃĐtica e integridade frente à corrupçÃĢo institucional escandalosa da força policial da qual fazia parte. AlÃĐm disso, a trama tambÃĐm aborda a vida conturbada do personagem de Russel Crowe que enfrenta um processo de disputa judicial pela guarda do filho e acaba tendo seu destino profissional como investigador ligado a captura e desmantelamento das atividades criminosas de Frank Lucas. O roteiro de Steven Zaillian (inspirado em artigo publicado na revista New York: The Return of Superfly de Mark Jacobson) alcança Êxito ao optar pelo desenvolvimento paralelo de protagonismos antagÃīnicos, ressaltando caracterÃsticas psicolÃģgicas e personalidades dissonantes, embora promova com mais incidÊncia e entusiasmo o drama do personagem de Denzel Washington e torne em determinado momento, o arco de Richie um tanto moroso e desinteressante, ainda que ressalte suas contradiçÃĩes pessoais versus sua conduta profissional exemplar. A abordagem de subtramas que contemplam a corrupçÃĢo institucional, prÃĄticas deliberadamente ilegais e comportamentos criminosos de policiais funcionam como uma amÃĄlgama que une os caminhos e destinos dos protagonistas e estÃĢo encaixadas com precisÃĢo ao longo do enredo.

Algumas escolhas, por outro lado, soam um tanto forçadas como a tentativa de estabelecer uma espÃĐcie de relaçÃĢo amistosa entre o mafioso e o agente Roberts ao final do longa, o que nÃĢo se justifica, dada a intransigÊncia sÃģlida e distinçÃĢo Ãģbvia do universo de seus "papÃĐis sociais". Uma omissÃĢo histÃģrica cara e que chega a causar certo incÃīmodo em âO Gangsterâ ÃĐ a pouca ou quase nula importÃĒncia dada à s turbulÊncias polÃtico-sociais vividas nos Estados Unidos durante as dÃĐcadas de 60 e 70, uma vez que a luta do movimento negro pelos direitos civis (inclusive a relaçÃĢo desta com o prÃģprio Frank), as manifestaçÃĩes antibelicistas e a contracultura nem sequer aparecem relacionadas à s trajetÃģrias dos protagonistas, abandonados numa indiferença contextual gritante em se tratando de uma obra inspirada em eventos reais (tambÃĐm nÃĢo sabemos se houve apuraçÃĢo para punir os militares envolvidos no trÃĄfico de drogas da TailÃĒndia). A direçÃĢo de Ridley Scott tem vigor, fluidez, embasamento visual e estilo que se detÃĐm na reproduçÃĢo dos pormenores do universo das mÃĄfias, fisgando nossa atençÃĢo, explorando o melhor dos atores e das situaçÃĩes dramÃĄticas, numa dosagem precisa dos contrapontos entre os arcos narrativos. Soma-se a isto, um design de produçÃĢo impecÃĄvel, numa reconstruçÃĢo bastante realista da cidade de Nova York dos fins dos anos de 60 e inÃcio dos anos 70, repleta de edifÃcios decadentes, muita poluiçÃĢo, pobreza e criminalidade. A fotografia em cores frias e tons pastÃĐis alimenta essa ambientaçÃĢo sÃģrdida e a atmosfera suja que impregna a prÃģpria mensagem que o enredo desenvolve. JÃĄ a ediçÃĢo, se num primeiro momento chega a confundir dada a quantidade de informaçÃĩes que entrega ao publico logo nos primeiros instantes do filme, com o tempo acaba se encaixando rapidamente e se harmonizando com a proposta, concatenando os eventos com desenvoltura e precisÃĢo. As interaçÃĩes familiares e Ãntimas, as manifestaçÃĩes dos afetos e das paixÃĩes possuem assaz relevÃĒncia em "O Gangster", numa ambivalÊncia que desconstrÃģi o maniqueÃsmo simplista do "mocinho" versus "bandido", jÃĄ que de um lado, insurge o chefÃĢo do Harlem como uma figura humana, à s vezes ardilosa e violenta, mas sobretudo, sensÃvel à s necessidades materiais de sua numerosa famÃlia, e do outro, o tira honesto e de um senso ÃĐtico inabalÃĄvel, mas que possui uma vida emocional desregrada e impulsiva, equilibrando-se entre o trabalho investigativo e os estudos jurÃdicos. A opulÊncia e o conforto material adquiridos na construçÃĢo do impÃĐrio mafioso de Frank Lucas trazem para o ÃĒmago dos acontecimentos muitos parentes, mÃĢe, irmÃĢos, sobrinhos, etc. que passam a experimentar os altos e baixos de um homem mergulhado nas preocupaçÃĩes em manter e expandir um legado, estabelecer um nome (ou uma marca como o prÃģprio personagem diz) e administrar um poder que nÃĢo permite vacilos sentimentais, ofensas ou extravagancias (erro que o gangster acaba cometendo). Vale destacar aqui as atuaçÃĩes de Chiwetel Ejiofor (Huey Lucas) como irmÃĢo do protagonista e que acaba adentrando uma vida de luxos e excessos, sucumbindo à fragilidade imatura e chamando a atençÃĢo de forma perigosa para os negÃģcios do irmÃĢo. Ruby Dee (Mama Lucas) tem presença marcante como a matriarca humilde, protetora e que conhece como ninguÃĐm o filho que tem (a atriz protagoniza talvez a cena mais impactante e dramaticamente intensa do filme, quando seu personagem desfere um tapa no rosto do filho Frank, impedindo-o de matar o corrupto Trupo). Por falar em corrupçÃĢo e polÃcia, assunto que atravessa o enredo de forma contundente, Josh Brolin (Detetive Trupo) interpreta em grande estilo o tira durÃĢo, corrupto, ganancioso e cÃnico que chantageia, ameaça e rouba os prÃģprios criminosos. Muito seguro de sua impunidade acaba com um fim trÃĄgico (suicÃdio) à medida que o chefÃĢo do Harlem firma acordo de delaçÃĢo apoiando os federais e Richie numa limpeza homÃĐrica nos distritos policiais de Nova York. Cabe mencionar a exuberÃĒncia meio cafetÃĢ e ousada, do extravagante Nicky Barnes, interpretado com instinto por Cuba Gooding Jr., âencurraladoâ por Frank ao alterar a composiçÃĢo do âblue magicâ. âO Gangsterâ ratifica essa competÊncia cinematogrÃĄfica um tanto ambiciosa e versÃĄtil de Ridley Scott, mesmo que o filme nÃĢo alcance toda magnitude artÃstica dos grandes clÃĄssicos do gÊnero.
Por: Ãbine Fernando Silva