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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

O Homem Que Virou Suco (1981)

Direção: João Batista de Andrade

Roteiro: João Batista de Andrade

Elenco principal: José Dumont, Aldo Bueno, Rafael de Carvalho, Ruthinéa de Moraes, Denoy de Oliveira, Dominguinhos, Ruth Escobar, Vital Farias.

José Dumont interpreta o sarcástico poeta "Deraldo" no filme de João Batista de Andrade

"Quem nunca teve um tostão, quando arranja sempre abusa, desconhece os companheiros e é o primeiro que acusa, como diz o ditado, quem nunca comeu merda quando come se lambuza!" (vitupério do personagem Deraldo em "O Homem Que Virou Suco").


Restaurado entre 2005 e 2006 por técnicos do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB) a partir de uma cópia mal preservada em 16 mm, “O Homem Que Virou Suco” de João Batista de Andrade materializa uma resistência pouco difundida, mas, incansável pela preservação da memória audiovisual, haja vista o desprezível e ignominioso tratamento institucional destinado à cultura e ao objeto artístico no país, o que inevitavelmente culminou, ao longo do tempo, numa série de perdas significativas e irreparáveis no rico acervo da Cinemateca Brasileira. O longa protagonizado pelo genial e prolífero ator paraibano José Dumont arrebatou diversos prêmios a época de seu lançamento, entre eles, a Medalha de Ouro no Festival de Moscou em 1981. O enredo do filme acompanha Deraldo (José Dumont), poeta arretado, vendedor de cordéis recém-chegado a São Paulo e morador da periferia que acaba confundido com Severino (José Dumont), um operário demitido que durante uma cerimonia de premiação na empresa acaba assassinando o patrão e tornando-se foragido. A peripécias do impetuoso cordelista para provar sua inocência é marcada por diversos conflitos sociais, escancarando as desigualdades de classe, a violência institucional, os preconceitos xenofóbicos regionais e a exploração da mão de obra nordestina numa cidade opressora e excludente, locomotiva de “espremer” gente como o próprio título da produção sugere. O roteiro elaborado pelo próprio João Batista ecoa certo engajamento militante contra as injustiças sociais, conectando oportunamente o enredo do filme ao agitado contexto histórico da luta pela abertura democrática e o fim do regime militar e denunciando as mazelas do processo de imigração nordestina em São Paulo no começo dos anos 80 através do testemunho da complexa e insubmissa figura de Deraldo, personagem que constitui uma espécie de rejeição lúcida à caricatura nordestina normalmente difundida nos grandes centros urbanos do Sudeste, crivada de estereótipos e preconceitos. Ora, as “desventuras” do irreverente e destemido poeta tentando provar sua inocência, enquanto transita de emprego a emprego para sobreviver revelam um cosmos urbano e social impregnado pela ausência e o abandono do Estado (favelização e violência policial), pela necessidade de incorporação urgente da força de trabalho imigrante na construção civil e pela reprodução de preconceitos classistas e xenofóbicos naturalizados na sociabilidade e manifestados na dramaturgia da trama não só entre os personagens abastados, mas também, de maneira trágica, entre os trabalhadores pobres que depreciam e abdicam de suas próprias raízes culturais, incorporando e promovendo a falaciosa ideologia meritocrática da metrópole. Por outro lado, o intrépido protagonista encarna uma resistência individual pulverizada e anárquica contra a exploração e a injustiça, valendo-se sempre de sua lucidez combativa, de sua sarcástica língua afiada, de sua inteligência criativa e extinto de sobrevivência no enfrentamento, ora das contradições e da incompreensão dos seus, ora dos desmandos e das arbitrariedades institucionais e dos patrões, muito embora, o anseio cidadão de integrar-se ao sistema e às regras do jogo por meio da regulamentação burocrática, da obtenção dos documentos e da comprovação da inocência apareçam como horizonte na jornada desse sujeito insistentemente posto à margem da dignidade e “espremido” pelas engrenagens capitalistas da cidade. O texto de João Batista de Andrade progride em sua simplicidade direta aproveitando o pano de fundo do caso policial com sua alta carga de sugestão simbólica para desenvolver uma série de conflitos mais ou menos episódicos, onde a espontaneidade e a naturalidade dramática em cena, às vezes até um tanto exagerada e histriônica, compõe a atmosfera hostil e excludente dos espaços sociais, sem jamais perder de vista o humor cáustico e o escárnio, suscitado, sobretudo, pela performance espirituosa e inspirada de Dumont. A estética realista e minimalista do diretor mineiro bebe na fonte dos movimentos cinematográficos modernos, tanto do Neorrealismo quanto do Cinema Novo, seja pelas abordagens temáticas, seja pela estilística, adotando o registro cru e meio amador do 16 mm numa proposta claramente interventiva em cenários reais (periferia da zona sul de SP, centro da cidade, metro, etc.), recorrendo ainda a uma decupagem mais livre e espontânea por meio de uma câmera de mão testemunhal e estimulando o improviso do elenco em muitas ocasiões. Já a dinâmica brusca da edição e a progressão meio intercalada da narrativa não chegam a prejudicar o ritmo do filme ou o envolvimento do espectador, embora possam causar algum estranhamento. “O Homem Que Virou Suco” articula a crítica social coadunando à tragédia do imigrante nordestino em São Paulo, o tom galhofeiro e debochado especialmente direcionado às figuras de poder. A dura jornada do poeta paraibano para provar a verdade e alcançar a dignidade parece sugerir um desfecho menos tenebroso, contrariando a tendência trágica da trama, uma vez que a integração do imigrante marginalizado às exigências jurídicas e funcionais da estrutura social (obtendo os documentos e consequentemente os direitos) dispensam a nefasta metáfora do “suco”, talvez, mais adequada ao destino do ex-operário Severino. Os elementos temáticos que irrompem em maior ou menor grau desse importantíssimo filme de João Batista de Andrade, especialmente, o crescimento urbano caótico de São Paulo e a favelização das periferias, a exploração da mão de obra nordestina acompanhada de um vergonhoso processo de negação da cidadania, a violência policial e a xenofobia, além da perseverança de um paraibano aguerrido, criativo e batalhador compõem um documento audiovisual e ficcional bastante fidedigno da recente história da maior metrópole da América Latina.


Por: Ábine Fernando Silva


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