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  • Foto do escritorÁbine Fernando Silva

O Mistério de Silver Lake (2018)

Direção: David Robert Mitchell

Roteiro: David Robert Mitchell

Elenco principal: Andrew Garfield, Riley Keough, Riki Lindhome, Patrick Fischler, Jimmi Simpson, Callie Hernandez, Summer Bishil.

Disponível: Max

Trama neo-noir repleta de simbolismos, metalinguagens e concepções visuais surrealistas “O Mistério de Silver Lake” de David Robert Mitchell suscita estranhamento e incomodo pela disparidade lúdica de seu roteiro, repleto de articulações temáticas de cunho filosófico, existencial e social que se entrelaçam às peripécias do aturdido e deslocado protagonista vivido por Andrew Garfield, e, também, pelo aspecto onírico e delirante de eventos que se misturam a uma realidade bastante implacável e cínica, confundindo a percepção e a certeza do espectador acerca do que é verídico ou fantasioso naquele universo narrativo. Sam habita um condomínio suburbano de Los Angeles em Hollywood, onde boa parte dos moradores trabalha direta ou indiretamente na indústria cinematográfica. O largado e descuidado jovem passa seus dias entregue a uma inércia sem perspectivas e intrigado com os assassinatos dos cãezinhos perpetrados na região e que ceifou, inclusive, a vida do pobre animalzinho de sua ex-namorada. Ao passo em que empreende uma busca por respostas aos estranhos crimes cometidos contra os animais, Sam se envolve com Sarah (Riley Keough), a nova vizinha da casa ao lado a quem se apaixona após uma fugaz noite de flerte. Não obstante, no outro dia, o estranho rapaz se dá conta do “desaparecimento” inexplicável da garota, despertando novamente sua inerente paranoia, lançando-o numa jornada investigativa de auto-descobertas e de revelações escabrosas sobre as engrenagens sórdidas de uma Hollywood decadente, controlada por figurões endinheirados que ditam as regras e os destinos alheios. O roteiro assinado pelo próprio Mitchell explora a rotina de um jovem totalmente fora de sintonia com as exigências da vida ordinária, cuja condição degradante física e psicológica remete a um quadro de dependência química ou do desenvolvimento de um estado depressivo e delirante, uma vez que o comportamento de Sam não apresenta engajamento, perspectiva ou qualquer motivação clara que o conecte com as questões particulares da própria sobrevivência (sua habitação e aparência revelam uma alienação pujante). A princípio, o espectador se depara com a estranheza de um sujeito completamente à deriva na vida, tentando talvez compreender ou encontrar diante da tela uma justificativa lógica que explique a natureza daquele tipo de situação. Algumas respostas se apresentam, não de forma tão evidente é verdade, mas à medida que os acontecimentos se sucedem, nota-se que a ponta de interesse na realidade capaz de instigar o personagem de Andrew Garfield justifica-se na fixação de uma ideia, num senso paranoico que o lança numa “missão” que o próprio indivíduo não sabe muito bem ao certo como solucionar, primeiro em relação ao serial killer dos cachorros e logo em seguida, a tentativa de saber o paradeiro de Sarah. É como se o grande vazio existencial, a desilusão e o absurdo da falta de sentido da vida fizessem com que o herói no desespero superestimasse sua importância, tentando algum engajamento, embrenhando-se por um mistério que sugere muito mais, o efeito de um desequilíbrio psicológico e emocional. Desta forma, o texto de David Robert Mitchell concatena as ações de um sujeito confuso que investiga o suposto “desaparecimento” de uma garota que ele mal conhece, chegando a respostas absurdas, interagindo com personagens excêntricos e fúteis, descobrindo verdades e segredos putrefatos sobre o universo das pessoas, dos negócios e das engrenagens da indústria hollywoodiana do entretenimento.

Sam se defronta com um sistema perverso, insidioso e ameaçador de uma cultura abjeta, escusa e imoral que remete às narrativas noirs, algo que se traduz pela exploração sexual dos ricos, pela lavagem cerebral de pseudo gurus e pela submissão pessoal em troca de uma vida materialmente confortável. Além disso, a esclarecedora jornada ainda chama a atenção para o papel dos poderosos da indústria cultural que determinam os padrões e os comportamentos em função dos lucros, desmistificando a aparente espontaneidade, originalidade e sinceridade artísticas, pois tudo é controle, alienação, subjugação e poder (a sequencia em que o jovem interage com o produtor musical e descobre que todos os seus gostos, preferências e atitudes foram moldadas a partir de um propósito comercial projetado é estarrecedor). O desorientado fã de Janet Gaynor (O Sétimo Céu, 1927, Frank Borzage) conforme persegue as pistas em busca da garota “desaparecida”, o que funciona também como uma espécie de busca por si mesmo, naturalmente se defronta com um absurdo “nonsense” que sugere ao espectador a projeção de uma mente que borra as fronteiras entre o real e a fantasia, afastando qualquer certeza sobre a fidedignidade de certas situações, lugares e relações travadas com determinados personagens (o assassino de cachorros, o cafetão explorador das modelos, o rei dos mendigos, a existência da mulher coruja aparecem como conteúdos que transitam entre o real e o fantasioso). Já no início do terceiro ato, o espectador é surpreendido com uma possível justificativa acerca deste estado turbulento e anormal da vida do rapaz, que poderia ter iniciado após o rompimento com a ex-namorada (Summer Bishil), que o deixara por causa da ambição profissional e financeira, porém, tal evidencia acaba se tornando mesmo apenas um bom palpite, já que a trama não se interessa por maiores explicações. A direção constrói um clima de instabilidade do real ao adotar a perspectiva do protagonista, desorientando e intrigando com transições de cenas que abarcam circunstancias improváveis, atitudes estranhas e alguns personagens que parecem ter saído de uma narrativa fantástica. Há uma atmosfera onírica e misteriosa no estilo David Lynch, ancoradas numa montagem que acompanha o ritmo letárgico das peripécias de Sam, com uso de uma trilha solene e gradativamente apreensiva, própria de um suspense noir. Somam-se a isto, as idiossincrasias de um jovem obcecado por uma ideia fixa que açambarca produtos da indústria cultural, tais como músicas, quadrinhos, filmes e objetos retros para montar um quebra-cabeça complexo que parece fazer sentido somente para ele e cujos sinais o levariam a verdade de sua busca. O exercício de metalinguagem levado a cabo pelo filme também faz referências visuais diretas e indiretas a produções e astros hollywoodianos do período clássico, estabelecendo um elo entre passado e presente em que a sordidez, a promiscuidade e a superficialidade do ambiente artístico persistem como uma áurea sobre aquele universo badalado e hipócrita. O foco de Mitchell na dramaticidade do comportamento e das atitudes do rapaz, o estudo cuidadoso de personagem encontra vazão no excelente trabalho de Andrew Garfield que transmite confusão psicológica, crise, desajuste e instabilidade de forma espontânea, sincera e convincente. A lentidão dos gestos, o aspecto descuidado, as roupas surradas e sujas completam os caracteres do papel mais desafiador da carreira do ator. Destaque discreto para Riley Keough que interpreta a ambígua, meiga e imatura Sarah, aliciada por um grande ricaço, mas aparentemente consciente de um destino infeliz; para Riki Lindhome, à vontade como a jovem caipira que mantém uma amizade colorida com o protagonista ao passo que aspira um lugar ao sol como atriz na grande selva de Hollywood e finalmente, para Patrick Fischler, o nerd esquisitão e solitário, criador dos quadrinhos underground que fascinavam Sam. O filme de David Robert Mitchell é ousado e atraente a seu modo, não se preocupando com didatismos e dispensando os convencionalismos. Sua proposta narrativa “neo-noir” e simbólica, permeada de reflexões críticas cortantes a própria Hollywood encerram uma experiência cinematográfica instigante, de grande alcance criativo.


Por: Ábine Fernando Silva

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