Direção: Franklin J. Schaffner
Roteiro: Pierre Boulle (romance), Michael Wilson e Rod Serling
Elenco principal: Charlton Heston, Roddy McDowall, Kim Hunter, Maurice Evans, Linda Harrison, Robert Gunner, Jeff Burton.
Adaptação do romance homônimo de 1963 do francês Pierre Boulle, “O Planeta dos Macacos” de Franklin J. Schaffner representa um marco importante para o cinema moderno de ficção científica, tanto no que se refere ao impacto de sua mensagem sombria e apocalíptica sintonizada ao turbilhão histórico, político e social enfrentado pelos Estados Unidos no fim da década de 60, quanto no que corresponde à construção de seu arcabouço estético narrativo que reúne artistas célebres do audiovisual como o próprio Schaffner, Rod Serling, Michael Wilson e Jerry Goldsmith só para ficar em alguns nomes hollywoodianos de peso. O sucesso estrondoso de público e de crítica transformou o filme num produto altamente rentável integrando o que os estudiosos do cinema costumam chamar de high concept, fincando as bases de uma franquia longeva e vigorosa, revitalizada na segunda década do século XXI com uma série de três longas. A nave Icarus e seus quatro tripulantes em sono criogênico caem no lago de um planeta desconhecido, após sete meses em rota espacial. Enquanto buscam maiores informações sobre o lugar, atravessando um deserto e adentrando um território cada vez mais parecido com a Terra, os três sobreviventes, Taylor (Charlton Heston), Landon (Robert Gunner) e Dodge (Jeff Burton) têm os pertences furtados por uma horda humana presente nas redondezas, lançando-os no encalço de seus usurpadores. Em meio à tentativa de recuperar seus objetos, o desavisado trio acaba se misturando à turba alvoroçada de homens, mulheres e crianças no centro de uma perseguição alucinante promovida por um grupo de gorilas caçadores montados a cavalo e empunhando rifles. Dodge acaba morto, Taylor e Landon são capturados e levados juntos com os outros nativos ao coração de uma sociedade organizada, urbana e estratificada composta por gorilas, chimpanzés e orangotangos, descobrindo por fim a supremacia primata no topo da cadeia evolutiva daquele planeta. Enjaulado e hostilizado, o personagem de Heston conquista prontamente o interesse empírico e a solidariedade do casal de chimpanzés Zira (Kim Hunter) e Cornelius (Roddy McDowall), cientistas dispostos a provar a distinção psicológica e cognitiva do capturado em relação aos demais indivíduos de sua espécie tidos como bestas incapazes de subjetividade, desprovidos de uma linguagem articulada e do inconfundível “brilho nos olhos”. Não obstante, o orangotango Dr. Zaius (Maurice Evans), ministro da ciência e guardião da religiosidade símia não mede esforços para esconder a verdade sobre a existência ameaçadora dos astronautas, lobotomizando Landon e pretendendo o mesmo com Taylor que consegue fugir com sua parceira de cativeiro Nova (Linda Harrison) ajudado pelo fiel casal de pesquisadores chimpanzés. O grupo de foragidos parte em direção à Zona Proibida, tornando-se alvo do inescrupuloso líder orangotango disposto a eliminar qualquer vestígio do passado que ponha em xeque a estabilidade das instituições primatas. O roteiro escrito por Rod Serling e Michael Wilson desenvolve-se deixando intencionalmente algumas lacunas intrigantes ao longo do enredo, desde o questionamento acerca dos motivos reais da viagem intergaláctica da nave Icarus (provavelmente numa missão de colonização) até a curiosa origem e natureza do planeta dos macacos, mantida oportunamente sob mistério e dúvida até o fim do terceiro ato. Os autores impregnam a narrativa de um pessimismo cruel e um sarcasmo visceral em relação ao pretenso salto progressivo da humanidade na Terra, denunciando as contradições e apontando as falhas de uma civilização cujos avanços científicos e tecnológicos podem ter significado sua auto aniquilação e destronamento como espécie postulante sobre as demais.
Ora, a turbulência do contexto histórico, político e social experimentada pelos Estados Unidos no fim da década de 60 corroboram esse viés paranoico, decadentista e apocalíptico do filme, encarnados também na figura do personagem vivido por Heston, sujeito que não esconde sua insatisfação e desprezo em relação ao mundo beligerante e prepotente do qual proveio, destilando em certas ocasiões suas observações mordazes, mas que por outro lado e de forma um tanto irônica, acaba tendo que aguentar tragicamente o pesado fardo das humilhações, injustiças e arbitrariedades perpetradas pelas autoridades símias, reprodutoras de uma realidade social, cultural e política nem um pouco estranha a Taylor. A inversão chocante e sarcástica dos papéis das espécies num planeta outrora palco da soberania absoluta do “suprassumo” do homo sapiens constitui um dos elementos mais bem explorados na trama pelos roteiristas, sensíveis a lógica do espelhamento ao retratarem o universo dos macacos como um reflexo de certas sociedades humanas (porque não a estadunidense?), sobretudo, do ponto de vista da dominação e da subjugação de outra raça, tomada como uma praga, selvagem, inferiorizada e “sem alma”. É como se a narrativa, de forma alegórica relacionasse a conduta arbitrária, violenta e injusta dos macacos com o próprio modus operandi da conduta do homem branco no interior da sociedade classista estadunidense da época, implacável, segregacionista, cruel e racista com seus próprios semelhantes, ao passo em que veicula a mensagem incrédula e fatalista fundada na impossibilidade de se permitir uma segunda chance a esta espécie bípede destruidora. Desta forma, o atormentado "Olhos Brilhantes" passa a viver na pele o pesadelo da condição animalesca e marginal da raça, enjaulado e impossibilitado, primeiro, de provar sua peculiaridade intelectual e comunicativa; e mais adiante, destituído de qualquer direito de defesa previsto pelo código jurídico sustentado pelo Dr. Zaius, o burocrata orangotango símbolo da manutenção da ordem e da tradição, além de grande antagonista de um herói que ao final da narrativa caminha junto com Nova em direção a um novo "paraíso", reeditando a gênese do mito de Adão e Eva. Por outro lado, o humanismo e a valorização do pensamento livre e científico integram a base da concepção de mundo e da ação dos chimpanzés Zira e Cornelius, dispostos a abalar as estruturas de sua própria realidade em nome da verdade e da justiça. Toda esta profundidade e riqueza temáticas ventiladas na trama de “O Planeta dos Macacos” vêm acompanhadas da construção de um universo ficcional épico extraordinário, ancorado na trilha orgânica ininterrupta e sinérgica de Jerry Goldsmith, mas, sobretudo, na articulação visual eloquente de Franklin J. Schaffner, cujas imagens poderosíssimas atingem seu ápice na impressionante e escabrosa revelação do destino da Terra, confirmada pelo que restou da esfacelada Estátua da Liberdade disposta nas areias da praia, símbolo do final de uma era e da bancarrota civilizatória da mais relevante potência capitalista do globo. Os belos planos e ângulos apurados do diretor absorvem a magnificência das paisagens naturais e do ambiente rural, estimulando mistério e fascínio, interessando-se também pelo minimalismo arcaico das dependências símias e captando através de planos mais fechados e sensíveis a riqueza das expressões humanas no semblante dos primatas, sobretudo dos protagonistas chimpanzés, ressaltando o diletante trabalho da maquiagem. Schaffner conduz a jornada de Taylor articulando muito bem a ação e a aventura, sem deixar escapar as sutilezas das manifestações irônicas e sarcásticas do texto, seja na postura impertinente do protagonista, seja na mentalidade xenofóbica dos macacos. Em contrapartida, o teor trágico, melodramático e emotivo advindo dos grandes momentos de interação e dos diálogos impactantes entre os personagens de Charlton Heston, Kim Hunter, Roddy McDowall e Maurice Evans tornam a experiência do filme ainda mais rica, complexa e memorável. “O Planeta dos Macacos” permanecerá sempre atual, estarrecedor e fascinante, resultado da perspicácia artística de grandes mentes criativas reunidas sob a batuta de Franklin J. Schaffner, um dos maiores herdeiros da clássica narrativa épica hollywoodiana.
Por: Ábine Fernando Silva
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