Direção: Harry Hook
Roteiro: Jay Presson Allen
Elenco principal: Balthazar Getty, Chris Furrh, James Badge Dale, Danuel Pipoly, Gary Rule
Segunda adaptação cinematográfica do romance homônimo de William Golding, “O Senhor das Moscas” de Harry Hook aproveita a relevância dos elementos temáticos e contextuais imprescindíveis no enredo da obra do escritor inglês para tentar reproduzir em tela o que teria significado para a geração dos anos de 1950 a iminência da destruição completa da civilização em decorrência da ameaça atômica, lançando luz ao pessimismo incrédulo de uma reconstrução social e coletiva vulnerável ao regresso de forças primitivas e violentas num mundo cujas instituições civilizadas foram repentinamente pulverizadas. Um grupo de garotos de uma escola militar são vítimas de um desastre aéreo, sendo lançados numa ilha inóspita, após um ataque ao avião que os transportavam para casa. Sem a presença de qualquer adulto (o piloto ferido acaba morrendo) e entregues a própria sorte, Ralph (Balthasar Getty), Jack (Chris Furrh), Porquinho (Danuel Pipoly) e companhia precisam sobreviver no misterioso e selvagem ambiente, recorrendo aos ensinamentos e a disciplina adquirida em sociedade. Não obstante, com o passar do tempo, um verdadeiro “racha” se manifesta no interior do grupo, opondo duas forças contrárias, mas até certo ponto interdependentes. Mais do que a própria vida e o desejo de resgate, o que está em jogo é a manutenção da civilização e da humanidade dos jovens. O roteiro de Jay Presson Allen opta por explorar discretamente um drama de sobrevivência que não se consolida de fato, haja vista a tendência relativamente rápida em que parte das crianças se adapta à ilha, regredindo a um estágio social primitivo e selvagem que em boa medida as aliena dos sofrimentos. Por mais que Ralph e seu grupo representem anseios e expectativas diversos em comparação aos rebelados que passam a viver na floresta, a disputa e a concorrência estabelecida com a “tribo” de Jack transformam a trama de “O Senhor das Moscas” num trhiller de sobrevivência com algumas pitadas de terror. Há uma espécie de disposição dramática um tanto ansiosa na narrativa que coloca um grupo significativo de crianças num espaço completamente adverso e hostil, atribuindo-lhes certas capacidades e uma maturidade que soam pouco críveis, ainda mais em se tratando de crianças e pré-adolescentes. Além disso, a falta de um tratamento mais adequado em relação à condição de “solidão”, “alheamento” e do próprio “desespero” em não saber ao certo como sobreviver aos perigos e desafios da ilha comprometem o viés realista da obra, embora não prejudique substancialmente o envolvimento do espectador. Claro que a intenção alegórica inspirada no texto de Golding e que essencialmente se interessa pelo tênue limite entre civilização e barbárie está no bojo das ambições do filme de Harry Hook e neste sentido, a dicotomia coletiva que coloca de um lado a liderança do personagem de Balthasar Getty e do outro, a liderança do personagem de Chris Furrh remete a muitas alusões do comportamento humano em sociedade ao longo de pelo menos cinco mil anos de existência (período que se identifica historicamente a manifestação de grandes civilizações ao redor do mundo). A leitura possível dos comportamentos e atitudes tomadas nos dois polos coletivos opostos são complexas e profusas, porém, evidencia-se num primeiro momento dos acontecimentos, a tentativa de racionalização organizacional por parte das lideranças, sobretudo Ralph, por meio de decisões legitimadas mutuamente, com o uso da “concha”, objeto simbólico que determina o poder do recurso retórico, do convencimento do discurso, próprio dos contextos sociais democráticos.
No entanto, à medida que “os caçadores” cada vez mais integrados àquele meio hostil, rústico e primitivo se dão conta, mesmo que o filme não exponha isto de forma tão clara, de sua importância fundamental como força física e bélica essencial para a sobrevivência, o movimento de dominação coercitiva com o uso da violência extrema são incorporados de forma natural e espontânea, anulando-se o uso da palavra como mecanismo diplomático de entendimento entre os jovens, assim como o controle da tecnologia, simbolizados pelos “óculos” do Porquinho ratifica de vez a metáfora da dominação de uma sociedade sobre a outra. O processo de transformação de Jack e os demais garotos numa espécie de tribo ou “horda”, termo empregado aqui em seu sentido pejorativo, acontece de forma gradual: começam a agir em “bando” para caçar, confeccionam suas lanças, são tomados por um êxtase místico diante do inexplicável traduzido pela conduta ritualística cerimonial, pela crença anímica e finalmente, a selvageria do grupo se consuma com os assassinatos de Simon (James Badge Dale) e do personagem de Danuel Pipoly. O mito do bom selvagem cai por terra na visão sombria de “O Senhor das Moscas”, ainda que se perceba o maniqueísmo que atravessa o enredo, permitindo uma idealização dos que se mantém firmes frente à barbárie. Ora, a genialidade do escritor inglês em escolher crianças como protagonistas de um conto macabro sobre o colapso da civilização encontra vazão na insegurança inerente à tenra idade, no desejo pueril de se livrar das imposições do universo adulto e consequentemente no prazer em transgredir as regras, algo que o longa de Hook adapta muito bem. A direção articula uma atmosfera tensa, obscura e pessimista que se justifica no embate dramático entre os personagens mais ou menos incomodados com a possibilidade ou não do resgate, elemento importante que impulsiona os trágicos eventos que se desenrolam, cujo ritmo dinâmico e objetivo da montagem produzem um apressamento que se não chega a comprometer a coerência, causa algum incomodo. A cinematografia aborda a natureza selvagem do espaço e sua relação com os garotos, tanto os que se incorporam rapidamente aquele mundo, quanto os que resistem mantendo a esperança em deixar a ilha, interessada preferencialmente nas interações e nas convivências, com uma câmera atenta às reações, as atitudes e escolhas tomadas, revelando pequenas alegrias, conquistas, êxtases, sofrimentos, angústias, medos, acessos de raiva e brutalidade. Alguns momentos significativos da trama são bastante estilizados com alguns planos sequencia em câmera lenta e o uso de uma trilha instrumental que modula o tom dramático de acordo com a natureza das cenas (a sequencia do assassinato de Simon, por exemplo, é regida por uma música opressiva e sinistra). O elenco mirim principal é bem conduzido, espontâneo e corresponde a altura as exigências expressivas e emocionais essenciais da narrativa com destaque para a presença firme, séria e responsável demais que Balthasar Getty empresta ao personagem Ralph; a interpretação circunspecta, o aspecto tímido, intimista e cerebral de Danuel Pipoly como o Porquinho e a desenvoltura prática, instintiva e proativa que Chris Furrh imprime a Jack, cujo comportamento avesso às regras e irrefletido lhe conduz à selvageria. “O Senhor das Moscas” aborda o que há de mais deplorável e obscuro na natureza humana exposta às condições sociais limítrofes, entrevendo que tais manifestações gestam a sombra das ações dos homens em todos os tempos, propondo finalmente a reflexão estarrecedora sobre quem somos ou o que podemos nos tornar.
Por: Ábine Fernando Silva