Direção: Ramin Bahrani
Roteiro: Ramin Bahrani/adaptação do livro de Aravind Adiga
Elenco principal: Adarsh Gourav, Rajkummar Rao, Priyanka Chopra, Mahesh Manjrekar, Vijay Maurya, Kamlesh Gill.
Adaptação do best seller homônimo de Aravind Adiga, “O Tigre Branco” de Ramin Bahrani aproveita o pano de fundo atual de uma Índia em processo intenso de modernização capitalista, cujos alicerces desenvolvimentistas ancoram um sistema sociocultural anacrônico e perverso de subserviência, para narrar a oportuna trajetória de ascensão financeira do jovem aldeão Balram Halwai (Adarsh Gourav), confidenciada a partir da própria perspectiva do personagem que num movimento de reflexão das experiências comunica ao expectador de forma tragicômica sua escalada ao topo da pirâmide social, fenômeno conquistado primeiro pelo choque decisivo advindo de uma situação cruel e injusta impingida pelos patrões, depois por uma profunda transformação pessoal e rejeição consciente das tradições servis arcaicas de seu país, tão desumanas ao condenarem milhões de indianos a uma espécie de estagnação material e miséria consentida. Proveniente de uma casta social inferior e paupérrima, Balram atravessava seus dias no vilarejo preso ao ciclo vicioso e reprodutivo da pobreza, “conformado” com um destino humilde e subalterno, uma vez pertencente ao grande “galinheiro”, metáfora explícita da condição de completa inércia coletiva e irrefletida a qual uma parcela significativa da população é induzida, marchando todos os dias rumo ao “abate”. Depois de conseguir a duras penas tirar sua habilitação de motorista, o protagonista alcança o desejado emprego como chofer particular de Ashok (Rajkummar Rao), filho do grande minerador corrupto e senhorio do vilarejo, experimentando a partir daí uma série de conflitos, humilhações e injustiças que o colocam frente a frente com dilemas pessoais e culturais, fazendo-o manifestar uma indignação latente em relação àquela realidade e impulsionando-o a tomar decisões radicais, invertendo a lógica persistente de seu mundo ao assassinar seu “senhor” e roubar-lhe uma generosa quantia em dinheiro para então dar início a um próspero empreendimento no ramo dos transportes. O roteiro adaptado pelo próprio Bahrani utiliza o recurso do depoimento pós-experiência do sujeito bem sucedido (em forma de e-mail/confidencia ao ministro chinês e por extensão ao expectador) para deixar bem claro o sucesso da jornada de um improvável herói dentro do imobilismo da complexa estratificação social na Índia, condensando a perspectiva narrativa um tom crítico e denunciatório que se auto justifica, haja vista um estado de coisas garantidor da exclusão, da miséria e de certa opressão legitimada culturalmente. A trama apresenta como pano de fundo, uma nação extremamente populosa, cuja potencia econômica, urbana e moderna parece caminhar de mãos dadas, indiferente e insensível, com os escandalosos problemas sociais, intencionalmente negligenciados pelo Estado e seus corruptos representantes que mantém relações escusas com pequenos poderes locais de castas abastadas, beneficiárias incontestes da exploração massiva daqueles integrantes do “galinheiro”. O filme canaliza o drama abafado de um contingente expressivo da sociedade indiana através da ótica do jovem protagonista que carrega nas costas o fardo da tradição, a obrigação dos deveres familiares e a necessidade de reprodução de um comportamento subalterno muitas vezes humilhante, sem, no entanto, sufocar seu incomodo pessoal e ambição, fatores que levam o personagem a galgar paulatinamente alguns degraus de destaque, seguindo os preceitos de sua casta, mas se dando conta ao mesmo tempo, da inexorabilidade e crueldade de um sistema social implacável com os mais pobres.
Os patrões diretos do personagem de Adarsh Gourav, ambos educados nos Estados Unidos parecem encarnar o símbolo do capitalismo liberal e democrático, estranhos às tradições e até mesmo à religiosidade de seu próprio país, tendem a tratar o prestativo e solícito motorista com certa simpatia e dignidade previsível do contrato liberal, mais especificamente Pynk Shah (Priyanka Chopra), a jovem companheira do playboy Ashok e por sua vez, vítima constante da discriminação machista do patriarca e minerador Cegonha (Mahesh Manjrekar), pai de seu noivo. A contradição da representatividade cultural e ideológica do casal, claramente ocidentalizadas, supostamente imbuídos dos ideais de cidadania e direitos, não dura muito tempo, apresentando-se apenas como um verniz fraco e conveniente de crença genuína no processo civilizatório, já que diante de uma situação séria e decisiva, Ashok e sua influente família acabam recorrendo ao infame poder tradicional e financeiro que dispõe os privilegiados da nação para chantagear o pobre motorista a assumir a culpa pelo crime de atropelamento e morte, cometido pela embriagada patroa. A partir daí, nasce o “tigre branco”, o despertar de Balram para transformar o seu destino e mudar o estado das coisas, sem, contudo, abrir mão das mesmas artimanhas inescrupulosas de seus opressores: o assassinato, o roubo, a corrupção, a moral de conveniência e porque não, o empreendedorismo liberal. Ora, a conquista do “tigre branco” ou o resultado de sua empreitada final ao assassinar o próprio senhor, tomando-lhe o dinheiro e montando o próprio empreendimento tende a reforçar a mensagem desalentadora do capitalismo selvagem que se reproduz também pelo crime e pela prática individual ilícita, muito embora, tais fatores sejam responsáveis pelo rompimento com a ideologia dos “joelhos dobrados” potencializadora da selvageria das práticas capitalistas na Índia. Por outro lado, o novo empresário, sensível e consciente de suas origens, não abdica da lógica do lucro e da exploração, ao contrário, celebra sua metamorfose em “tigre branco” montando um negócio que ao redimensionar as relações trabalhistas, necessariamente acaba adotando a crença deste método como possível forma de superação da condição indigente do “galinheiro”. Ramin Bahrani dirige seu longa adotando um tom tragicômico constante, retratando a miséria, o imobilismo social, a cultura servil e a violência, inclusive física, da forma mais banal e natural possíveis, reforçando exageros e absurdos para estimular mal-estar, estranhamento e provocar o expectador. A cinematografia perscrutadora e naturalista interessa-se pela efervescência humilde e rude dos espaços, pela rotina cultural e religiosa pulsante, por certo funcionamento orgânico e previsível da vida simples e pobre dos indianos, mas também engloba a suntuosidade física e o conforto dos ambientes abastados, estabelecendo o choque de mundos, sem deixar de acompanhar de perto nesse processo, as peripécias de seu ambicioso e otimista herói, cujo sorriso fácil no rosto, representa uma espécie de retrato impotente e triste da própria condição. O humor cínico e cáustico de “O Tigre Branco” advém muitas vezes, do traquejo oportuno, inteligente e improvisado do esperto personagem de Gourav diante de situações dramáticas desafiantes e tensas, conduzidas com habilidade pela direção que transita facilmente entre o cômico, o dramático e o trágico, entrelaçando estes elementos ao longo da narrativa. A dinâmica fluída da montagem e a trilha característica estrategicamente dosada embalam a trama que jamais se detém efetivamente em algum conflito, coerente com a lógica de reflexão da própria experiência no decorrer do relato. Destaque para a atuação versátil de Adarsh Gourav capaz de modular com naturalidade as emoções e a performance, sensível às exigências dramáticas da trama, seja pela espontaneidade do humor mais caricatural, pela capacidade de comunicar tensão psicológica ou mesmo pela manifestação contida dos sofrimentos. “O Tigre Branco” para além da ironia ambígua de promoção do improvável, sustentando a tese da possibilidade de ascensão social a qualquer custo, funciona também como denuncia das práticas exploratórias indiscriminadas de um capitalismo moderno que se retroalimenta de estruturas socioculturais tradicionais, reproduzindo-se da forma mais cruel possível.
Por: Ábine Fernando Silva
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