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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

O Túmulo dos Vaga-Lumes (1988)

Direção: Isao Takahata

Roteiro: Isao Takahata

Personagens: Ayano Shiraishi (Setsuko), Tsutomu Tatsumi (Seita).

Seita e a irmãzinha Setsuko experimentam os horrores da guerra em "O Túmulo dos Vaga-Lumes"

Destoante das belas tramas fantásticas dos estúdios Ghibli repletas do humanismo otimista e de proposições holísticas e simbólicas acerca da relação entre homens e natureza, “O Túmulo dos Vaga-Lumes” representa um ponto de inflexão doloroso e lúgubre nas narrativas de animação japonesas, embora ostente de maneira geral, uma singela abordagem poética de seu drama amargo e desestabilizador que denúncia sem piedade à corrosão material, coletiva e moral de um povo em frangalhos, vítimas da guerra e de suas consequências nefastas. O enredo do filme se concentra basicamente nas peripécias de sobrevivência do adolescente Seita (Tsutomu Tatsumi) e de sua pequena irmãzinha Setsuko (Ayano Shiraishi), órfãos que ao deixarem seu lar e a cidade de Kobe no Japão, bombardeada pelo exército americano durante a 2ª Guerra Mundial, empreendem uma jornada corajosa de superação das adversidades físicas (fome e abrigo), emocionais (perda recente da mãe) e, sobretudo, sociais, uma vez que a condição limítrofe estabelecida pelo horror da guerra submeteu uma população inteira a uma espécie de vale tudo pela sobrevivência, onde a indiferença, a insensibilidade, a incompreensão e o egoísmo acabaram prevalecendo, não poupando se quer as pobres crianças. O roteiro Isao Takahata introduz de forma crua, triste, mas espiritualizada a morte do protagonista sem rodeios, logo no início da narrativa, para a partir desta cruel constatação, desenvolver um exercício de rememoração dos traumas da guerra sob a ótica do falecido Seita, jovem que encarna a altivez, o orgulho e a honra de uma família cujo pai (combatente da marinha japonesa), ausente por causa do conflito e a mãe, vitimada brutalmente pelas chamas do bombardeio americano, desamparam o pobre garoto e sua pequena irmã, entregues a própria sorte, num completo clima de destruição física, genocídio, desolação social e escassez de produtos básicos. Seja por onde os desvalidos irmãos perambulem, encontram insensibilidade, incompreensão e desconfiança tanto dos próprios familiares (tios) quanto da comunidade, forçada a conviver com as desgraças de uma realidade hostil e de uma vida sem horizontes. Desta forma, os irmãos ao deixarem a casa da tia, cada vez mais hostil e insensível aos órfãos (a pouca comida trazida pelo jovem protagonista findara, assim como os recursos provenientes da venda dos quimonos da mãe) passam a viver numa espécie de buraco ou abrigo na mata, sendo assaltados cada vez mais pela necessidade urgente de se alimentarem. Os traços do desenho de Takahata acompanham com sutileza o processo de degradação física dos personagens, cujas roupas vão ficando cada vez mais surradas e esfarrapadas, da mesma forma que seus semblantes e corpos experimentam uma aguda aparência famélica. Não há receios em retratar a face mais violenta e brutal da guerra, com a exibição de personagens feridos, enfermos ou mortos, num lugar tomado pelos escombros e pelo êxodo populacional. Em consonância com o contexto de destruição e privações de recursos, a sociedade japonesa abordada na animação, desassistida da proteção do Estado, revela-se frágil, distante de um senso coletivo humano, indiferente às homéricas desgraças alheias (exceção feita talvez à personagem da vizinha que se dispõe a cuidar da garotinha Setsuko no campo de refugiados após o episódio dos ferimentos graves da mãe ou do guarda que solta Seita ao reconhecer que seu crime fora motivado pelo instinto de sobrevivência).

Seita reconhece a mãe moribunda, vítima do bombardeio aéreo norte-americano

Por outro lado, a trama investe na relação singela e terna de um amor incondicional, puro e perseverante expresso entre os órfãos como artifício para atenuar a tom tão pessimista e desolador do enredo, no entanto, a inexorável áurea de instabilidade e tragédia é tão acachapante que arrebata esses breves momentos de “respiro” dramático, avisando-nos que “O Túmulo dos Vaga-Lumes” não se trata de uma história a qual devemos nutrir muitas esperanças em se tratando da realidade a qual seus sofridos personagens estão inseridos (há uma recorrência de eventos que reconduz a animação a sua premissa negativista: aviões, alertas de ataques, cadáveres expostos). À medida que a narrativa avança os sacrifícios de Seita para tornar a existência tão dura da simpática Setsuko suportável passam tanto por suas brincadeiras e invenções pueris, numa atitude de sincero escapismo e fantasia ingênua (o garoto tenta distraí-la, inclusive da própria desnutrição que acomete a menina) quanto pela prática do furto de comida e objetos das casas da região, tamanha penúria e miséria experimentadas. A poesia triste e fúnebre expressa na metáfora do vaga-lume, cuja luz intensa, extingue-se na manhã do dia seguinte remete aos órfãos, à situação fugaz de suas miseráveis vidas que ainda assim encontra no amor, na responsabilidade fraterna e na grandiloquência dos pequenos gestos o impulso necessário para seguir em frente (a forma como Seita guarda a caixinha com as balas de frutas, parcimoniosamente racionada para alegrar a irmãzinha nos momentos oportunos é de cortar o coração). Aquele Seita retratado no início da história, orgulhoso de sua condição social e familiar de destaque, tomado por um sentimento de dever para com sua mãe e irmã, ao longo do calvário submetido, encarna bravura, resiliência e coragem, vindo finalmente a sucumbir emocionalmente quando testemunha impotente a morte prematura de Setsuko. O subterfúgio de “O Túmulo dos Vaga-Lumes” encontra vazão na espiritualidade alvissareira que reserva um destino de cessação das misérias e sofrimentos às inocentes crianças que não encontraram no mundo a proteção e o amparo de que tanto necessitaram. Isao Takahata testemunhou na pele muitos dos horrores abordados em sua lúgubre animação e em sintonia com o conto de Akiyuki Nosaka produziu uma pérola cinematográfica antibelicista tristemente inesquecível.


Por: Ábine Fernando Silva


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