Direção: Ruy Guerra
Roteiro: Ruy Guerra, Miguel Torres e Pierre Pelegri
Elenco principal: Átila Iório, Nelson Xavier, Maria Gladys, Joel Barcelos, Hugo Carvana, Ivan Cândido, Antonio Pitanga.
Rebento legítimo do Cinema Novo e uma das obras mais importantes dessa estética moderna, “Os Fuzis” do moçambicano Ruy Guerra propõe uma abordagem e uma relação com o tema das desigualdades sociais e da miséria no sertão nordestino muito menos alegórico e teatral se comparado ao estilo glauberiano, chamando a atenção para uma construção dramatúrgica mais ambiciosa e evidenciando nesse processo, o caráter oneroso e altissonante da produção. “Os Fuzis” acompanha um destacamento policial que se dirige a Milagres no sertão baiano para impedir que a população do humilde vilarejo, vítima da seca e da fome, saqueie o armazém de alimentos de um comerciante local. Enquanto isso, um grupo de sertanejos miseráveis segue em procissão um líder beato com seu “touro sagrado” e o ex-policial e caminhoneiro Gaúcho (Átila Iório), sujeito oportunista e aproveitador também se estabelece no palco dos conflitos, tornando-se peça chave de um confronto violento ao finalmente se revoltar com a apatia comunitária e o pouco caso das autoridades diante do impacto trágico da fome. Lançado pouco tempo depois do Golpe Militar de 1964, o filme de Ruy Guerra forjado nos princípios da “Estética da Fome”, manifesto divulgado pelo colega Glauber em 1965, não poderia ser mais simbólico e oportuno ao contexto histórico-político da época, na medida em que escancara as mazelas das desigualdades sociais no sertão brasileiro, denunciando o menosprezo e a violência das forças institucionais com o povo famélico e vitimado pela seca, chamando a atenção para o papel sórdido da polícia como mantenedora da desgraça e guardiã dos interesses de ricos senhores locais. Além disso, o longa do moçambicano parece flertar com a revolta armada, num discreto aceno a resistência contra os militares, “conclamando” o espectador em sua derradeira mensagem a abandonar o comportamento passivo e complacente diante das injustiças, da mesma forma em que se insurge o personagem Gaúcho, “herói” improvável de uma tragédia covardemente subsidiada pelas autoridades governamentais. Os roteiristas comprometidos em traduzir a complexidade social e moral depreendida de um massacre prestes a eclodir, somam à tensão represada pelo contingente humano paupérrimo cada vez mais crescente em torno do armazém de Milagres, a fatalidade contraditória da empreitada inglória executada pelos integrantes do destacamento policial, sujeitos também oriundos do seio do povo, buscando catalisar no cabo Mário (Nelson Xavier) a desolação do mal estar interno, do conflito ideológico e da falta de sentido no dever a cumprir, muito embora, o soldado em crise decida acatar as ordens e seguir missão com seus companheiros. Se por um lado, “Os Fuzis” opera um plot imprevisível e arrebatador ao final do último ato, sugerindo deliberadamente a insurreição como saída legítima diante da opressão e da violência institucional, por outro, parece esgarçar demasiadamente sua leitura polêmica e pessimista acerca da reação de um povo humilde e devoto, constantemente prostrado, humilhado e mergulhado numa inanição sub-humana.
A força simbólica da arma de fogo que dá título ao longa fomenta essa espécie de passividade muda dos miseráveis, sobretudo, porque a trama centraliza no objeto nefasto, todo o cinismo, a força desproporcional e a perversidade dos garantidores do sistema, prontos a calar a bala qualquer distúrbio ou revolta, o que de fato se concretiza no enredo. O que está em foco na narrativa de Guerra é o retrato de um Brasil agrário e retrógrado, estigmatizado pelo desmando não só das oligarquias latifundiárias e políticas, mas, sobretudo, pela desumanização do sertanejo, calejado pelas intempéries inclementes da seca, da fome e inclinado a um comportamento religioso fanatizado, cujo breve e intercalado sub-arco dos famintos retirantes e adoradores do “touro sagrado” potencializa ainda mais a dimensão trágica dos imorais eventos em curso na pobre Milagres. Como obra tributária do Cinema Novo, a direção toca na ferida das desigualdades sociais e da miséria no sertão lançando mão de certas escolhas estilísticas que tendem a rejeitar a experimentação formal e o tratamento alegórico do enredo, perseguindo uma abordagem expressiva mais convencional e direta, ampliando, desta forma, o escopo da mensagem. Constata-se aqui o caráter de super produção do longa, ainda que sua proposta estética, depositária dos movimentos cinematográficos modernos (Neorrealismo Italiano/Nouvele Vague), recorra, de forma geral, à soluções criativas e práticas que prescindem de sofisticações técnicas e dispendiosas. Articula-se um registro realista e documental de espaços naturais e personagens, aproveitando atores não profissionais no elenco de apoio, explorando o aspecto lúgubre e cru da fotografia em preto e branco, recusando a trilha e utilizando apenas o som ambiente. De maneira geral, a decupagem mistura à composição de planos mais clássicos e tradicionais, movimentos livres e diretos da câmera de mão, onde o que se desnuda é o ambiente duro, hostil e desolado, apinhado de seres humanos cadavéricos e sem ocupação. A violência da fome e da seca somados a um misticismo desesperador e à presença cruel da polícia no cumprimento de uma ordem execrável forma uma amálgama de tensão e expectativa muito bem conduzida por Ruy Guerra que acaba optando por um desfecho dramático indigesto, duro e incrédulo para cada arco, destacando-se o sóbrio trabalho da montagem. O aspecto denunciatório, provocador e apreensivos preponderantes e explícitos na narrativa não sufocam, contudo, momentos mais pontuais de elaboração simbólica e poética como as cenas no bar da aposta do desmonte do fuzil e a sequência da relação amorosa meio conturbada entre o cabo Mario e a jovem Luísa (Maria Gladys), habitante do povoado. “Os Fuzis” de Ruy Guerra ostenta uma vitalidade histórica trágica e atual, pois denuncia um Brasil oligárquico, desigual, violento e místico, talvez não muito distante da modernidade e do suposto progresso urbano, herdeiros de processos sociais desumanos e excludentes.
Por: Ábine Fernando Silva
Muito bom! Parabéns!
Ábine, estava lendo o seu link, meio que aleatoriamente, até que ao final de surpreendo, que na verdade é uma crítica sua. Me curvo humildemente à profundidade da crítica, que nada deve a crítico algum, e tudo contribui a enriquecer quem precisa higienizar as ideias com textos pronundos, críticos e claros pela sensibilidade e honestidade intelectual.