Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Bernardo Bertolucci, Gianni Amico
Elenco principal: Pierre Clémenti, Stefania Sandrelli, Sergio Tofano, Tina Aumont.
Baseado no conto “O Duplo”, 1846 de Dostoiévski o filme de Bernardo Bertolucci acompanha Giacobbe (Pierre Clémenti), um jovem professor universitário de teatro que em meio a uma crise psicológica e emocional severas, desenvolve uma segunda personalidade, completamente destoante da primeira, intrusiva, subversiva e disposta a levar até as últimas consequências um plano revolucionário mirabolante através de um espetáculo teatral experimental que desestabilizaria as estruturas da sociedade romana. Não é atoa que Giacobbe vive uma turbulência mental incômoda e uma crise profunda em relação a sua condição pequeno-burguesa e ao seu lugar num mundo atravessado por transformações políticas, sociais e existenciais que começavam a sacudir a Europa culminando no famigerado Maio de 68 e a percepção sagaz da narrativa de Bertollucci constrói o paradoxo do sujeito que anseia a metamorfose profunda dos valores, repugna o comodismo intelectual alienado, posiciona-se contra os fascismos, guerras e injustiças, entretanto, encontra-se arraigado a um modo de vida material classista, privilegiado, parasitário e, portanto, reprodutor das desigualdades que tanto repudia. A saída consciente do protagonista que sente o peso insuportável destas contradições tão perturbadoras acaba sendo, num primeiro momento, o suicídio, gesto desesperado, talvez covarde, no entanto, prontamente abandonado pelo surgimento repentino de uma destemida segunda versão que lhe enche de novo ânimo. O duplo do jovem professor, solitário e palerma encarna sua oposição radical, firme e convicta, seja no que diz respeito aos comportamentos, modos e visual, seja nas tomadas de decisões assertivas, no desprezo que manifesta pela sociedade e seus valores arquitetando uma espécie de micro revolução, extremista, violenta, disfarçada de teatro, sem objetivos e desdobramentos políticos claros. Desta forma, esta segunda versão de Giacobbe, assassina um colega que vive na mesma pensão, possui e também mata Clara (Stefania Sandrelli), a garota que tanto idealizava, põe para funcionar seu projeto niilista cooptando seus próprios jovens alunos, além de acabar estrangulando uma vendedora ambulante de produtos de limpeza, num acesso psicótico repentino, mas que sugere uma revolta interna consciente contra a passividade consumista ou o sentimento de estupidez alienado e indiferente muitas vezes, manifestado pelos explorados. Bernardo Bertolucci permeia seu roteiro com situações dramáticas repletas de monólogos e diálogos cáusticos que remetem a temas politicamente efervescentes, a questões sociais e existenciais que marcaram o Ocidente na segunda metade do século XX, como a contracultura, o movimento antibelicista e anticolonialista, além dos questionamentos mais evidentes acerca da luta de classes e o papel de uma burguesia intelectual esquizofrênica em relação a seu próprio posicionamento no grande tabuleiro das convulsões sociais. Desenvolve-se num determinado momento, por meio da metalinguagem do enredo, a tese de que o “Cinema” e o “Teatro”, formas artísticas intimamente relacionadas, possuem uma pretensa missão política emancipadora e redentora, o que identifica de certa forma o aspecto contextual e histórico do filme e do próprio cineasta, jovem expoente do movimento que seria posteriormente batizado pela crítica como “Cinema Político Italiano”, cujos realizadores e produções açambarcaram veementemente problemáticas marxistas e revolucionárias.
Com uma proposta narrativa ousada e experimental, a direção se vale de um sem número de metáforas visuais e cênicas para desenvolver suas críticas e reflexões político-sociais, além de gradativamente construir uma atmosfera dúbia, um tanto surreal e instável devido à emergência da personalidade/personagem que no interior da trama tende a significar uma projeção da mente de um sujeito alucinado. O design de produção de “Partner” espalha uma série de objetos cuja carga simbólica estabelece conexões com as peripécias de Giacobbe, seu desequilíbrio psicológico e, sobretudo, com o teor de crítica irônica e ácida ao capitalismo, ao consumismo e a burguesia, refém de sua própria classe e inércia pela lógica do filme. O transtorno do protagonista e suas ações são registrados através de uma decupagem criativa, com distorções de enquadramentos, sutis planos sequências dentro de ambientes fechados (como o quarto escuro do professor de teatro, claustrofóbico e tomado pelas pilhas de livros) ou em cenários abertos com uma câmera de mão no estilo documental, sempre evidenciando elementos semânticos e mensagens subversivas, num fluxo narrativo condizente com a natureza de seus acontecimentos. Pierre Clémenti capta bem o espírito convulsivo e a ambiguidade psicológica de seu personagem, dando vida a duas figuras distintas, porém, interdependentes, permitindo que o expectador consiga identificar os dois “Giacobbe’s”, inclusive, conjecturando a respeito da insanidade que criou um “duplo” e comprovando o fenômeno projetivo. “Partner” veicula uma mensagem bastante implacável e pessimista no que se refere ao destino de seu protagonista quando lá pro seu desfecho, todavia frustrante, apaga um pouco as distinções de personalidades conflitantes e obriga o jovem professor a encarar a derrota ideológica de frente, a covardia coletiva de seus burgueses pupilos e além de tudo, sua própria insignificância como filho legítimo de uma classe que a História e a Revolução insistem em não confiar ao longo dos tempos.
Por: Ábine Fernando Silva
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