Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón
Elenco principal: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Fernando Grediaga, Jorge Antonio Guerrero, Nancy García, Verónica García, José Manuel Guerrero Mendoza.
Jornada memorialista, sentimental e poética ao passado das crônicas cotidianas de uma família de classe média mexicana em crise nos anos de 1970, o filme de AlfonsoCuarón por meio de uma estilística sensível e discreta interessa-se pela perspectiva da jovem empregada Cleo (Yalitza Aparicio) abordando entre outras coisas, aspectos complexos de conflitos sociais latentes, relações interpessoais que confundem hierarquias, além de revelar em pleno drama da desintegração familiar, da sobrevivência dos mais humildes e da gravidez precoce de uma humilde empregada, o desabrochar de mulheres fortes, que não se dobram as cacetadas da vida e do machismo. O enredo de “Roma” (nome de um pequeno distrito situado na Cidade do México) acompanha a personagem de Yalitza Aparicio, doméstica que vive e trabalha numa espaçosa casa familiar e suburbana juntamente com a amiga e colega de profissão Adela (Nancy García). A discreta Cleo passa seus dias com algum otimismo e esperança, entre a rotina das tarefas do lar, o vínculo afetivo com os filhos pequenos de seus empregadores e as raras distrações fugazes fora do ambiente laboral. De repente, esta heroína da odisseia da vida real, se vê envolvida inevitavelmente no doloroso processo de separação de seus patrões, Sofia (Marina de Tavira) e Antonio (Fernando Grediaga), enquanto precisa lidar com os novos desafios de uma gravidez precoce e inesperada, fenômeno que lhe enche de temores, haja vista uma possível rejeição da situação no trabalho e consequentemente uma demissão dolorosa. A partir daí, descortina-se o drama de superação de Cleo e Sofia, cada uma a seu modo, mulheres corajosas e que embora provenientes de classes sociais antagônicas, acabam se unindo na confidencia de um sofrimento bastante peculiar causado pela insensibilidade irresponsável, pela estupidez e abandono masculinos. O roteiro assinado pelo próprio Cuarón desenvolve com parcimônia e esmero os elementos dramáticos, explorando as relações afetivas e ambíguas, sobretudo, entre a empregada e o núcleo familiar, neste sentido, cada ação, gesto, olhar, para além da comunicação verbal ganha dimensões que ultrapassam as funções e hierarquias sociais sugeridas. O protagonismo de Cleo é construído com bastante discrição, sensibilidade e certa idealização, como se a humilde empregada não sentisse com tanta veemência os conflitos advindos de sua condição de classe subalterna (há certa abordagem romântica e assaz afetiva das relações entre empregada e patrões). Destacam-se os cuidados, o carinho, o apego e a cumplicidade das crianças com a doméstica, assim como certa generosidade e simpatia tanto da mãe dos pequenos, quanto da avó Teresa (Verónica García), num aparente movimento harmônico de integração familiar que definitivamente não convence, aspecto muito mais suavizado se compararmos ao que acontece no filme de Anna Muylaert, “Que Horas Ela Volta?” de 2015. A jovem de ascendência indígena e origem pobre ocupa um espaço estrito e circunscrito no convívio e na dinâmica daquelas pessoas que não são de fato seus “iguais”, e, portanto, o contrato de trabalho e a posição social da moça não são perdidos de vista nas sutilezas da trama do cineasta mexicano, inclusive quando o advento da gravidez vem à tona, trazendo a cruel possibilidade da perda de sua credibilidade, confiança e sustento.
“Roma” exalta a força destemida e perseverante de mulheres inquebrantáveis e a protagonista representa a solidez e o despertar vulcânico, potência e energia entranhadas, até insuspeitas que irrompem no momento oportuno para o enfrentamento das adversidades pessoais, da indiferença do namorado que não assume a paternidade do seu bebe e dos sofrimentos que arrebatam a patroa e os filhos (a cena do salvamento dos irmãos que se afogavam ilustra bem este aspecto). Por outro lado, a personagem de Marina de Tavira embora esteja do lado oposto do espectro social de Cleo, inclusive do ponto de vista étnico também precisa lidar com o “calvário” do fim do matrimonio, com a própria fragilidade emocional, com a dor da traição do marido e com amparo às crianças tão confusas e solitárias diante do turbilhão dos acontecimentos. Com muita coragem, confiança e dignidade Sofi se supera, tomando decisões radicais que rearticulam suas prioridades e com extinto de loba, protegendo sua prole, busca contornar os impactos psicológicos e emocionais da separação, troca de automóvel, viaja com a família para que o ex-marido leve seus pertences e muda de ocupação para manter e sustentar a casa. Cabe ainda mencionar o papel marcante da acolhedora avó Teresa, ainda que o roteiro não a evidencie tanto, a matriarca se destaca como mediadora de alguns conflitos entre as crianças, testemunha ocular junto com Cléo do trágico “Massacre de Corpus Christi” ocorrido em 1971 e reproduzido com grande realismo pela direção, além de experimentar na sequencia o angustiante episódio da desafortunada doméstica prestes a dar a luz dentro do automóvel, durante o engarrafamento a caminho do hospital. Se por um lado, “Roma” enaltece a grandeza do caráter e do esforço feminino para superar o viés retrógrado e machista arraigado na sociedade mexicana, independente do recorte de classe, por outro lado, promove a “imbecilização” de certa forma caricata dos personagens masculinos, retratados também como irrelevantes do ponto de vista moral, insensíveis à condição das mulheres, covardes, superficiais e ameaçadores. Toda esta adjetivação negativa, contrastante em relação à densidade e a complexidade psicológica das figuras femininas (este é um filme de mulheres fortes) funcionam como revanchismo apropriado e oportuno, uma vez que a hipérbole da trama de Cuarón não anula a possibilidade da existência real de sujeitos como Antonio, irresponsável e egoísta; Fermín (Jorge Antonio Guerrero), presunçoso, aproveitador e violento; Ramón (José Manuel Guerrero Mendoza) narcisista e indiferente. Do ponto de vista da unidade estilística, o capricho técnico e estético da produção Netflix chama a atenção pela singularidade poética da articulação do enredo, do tom reverencioso e sublime perseguido pelo cineasta mexicano para retratar o drama de um passado caro a sua memória particular infantil e afetiva. A cinematografia de “Roma” se estrutura por meio de uma decupagem contemplativa, expressa muitas vezes por uma câmera perscrutadora em planos médios que sutilmente se desloca em panorâmica por ambientes movimentados, captando a ação coreografada, a essência das representações dramáticas e o realismo cenográfico. A fotografia em preto e branco impecável, cujo foco aberto e levemente estático associado a uma mixagem de som ambiente plasticamente perfeita e uma montagem suave, de transições fluídas geram o efeito de uma memória pregressa terna e querida, como se o diretor buscasse o esplendor do passado de sua heroína, sem de fato confundir-se com a simbologia da personagem e sua condição étnico-social, não escondendo por sua vez os piores dramas e pesadelos desta realidade, superados por personagens femininas cheias de virtude, disposição e fé. Yalitza Aparicio surpreende pela naturalidade, sinceridade e profusão dramática em se tratando de uma atriz não profissional. “Roma” é o filme de Cleo e Cuarón constrói a sinergia perfeita com a estreante, extraindo de sua encenação uma verdade íntima inquestionável. Destaque também para interpretação enervante de Marina de Tavira como a inconformada Sofia, mulher compreensiva, de muita fibra e disposta a dar a volta por cima. Alfonso Cuarón concebeu sem sombra de dúvidas a obra de arte de sua vida e em cada pedacinho de “Roma” o expectador é capaz de perceber um perfeccionismo diletante, empenhado, uma paixão particular pelo universo narrado e um domínio técnico irretocável do cineasta, fatores que acalentaram a recepção da crítica e do público mundo afora, refletindo inclusive numa gama significativa de premiações cobiçadas, entre elas o Oscar de Melhor Direção/Fotografia e Filme Estrangeiro de 2019.
Por: Ábine Fernando Silva
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