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Foto do escritorÁbine Fernando Silva

Round 6 (2021)

Criação: Hwang Dong-hyuk

Elenco principal: Lee Jung-jae, Jung Ho-yeon, Gong Yoo, Wi Ha-joon, Park Hae Soo, Lee Yoo-mi, Heo Sung-tae, Kim Joo-ryeong, Oh Young-soo, Anupam Tripathi.

Disponível: Netflix

Park Hae Soo e Lee Jung-jae contracenam em Round 6 de Hwang Dong-hyuk

A relevância artística e a qualidade das produções cinematográficas sul coreanas já não é novidade mundial há pelo menos duas décadas, fator que corrobora não só o prestígio e o impacto internacional da indústria audiovisual do país asiático, notável pela influencia de nomes como Park Chan-wook, Kim Ki-duk, Na Hong-jin e Joon Bong Ho como também compete para promover elementos culturais, ideológicos e valores regionais muito próprios, ainda que muitos deles, referenciados no ocidente. Talvez o maior mérito de “Round 6”, a série criada por Hwang Dong-hyuk e produzida pela Netflix, consiste, entre outras potencialidades criativas, em propor uma leitura de mundo crua e uma reflexão ácida acerca da condição social e do destino de indivíduos fadados à ruína e a tragédia financeira no interior de um sistema capitalista selvagem e excludente. Para tal, a produção sul coreana lança mão de uma dramaturgia empenhada na construção de personagens complexos e cheio de dilemas, sintonizados à realidade da maioria das pessoas comuns fora da ficção, além de reaproveitar alguns conceitos e ideias presentes em outras obras já consagradas no imaginário popular (“Jogos Mortais”, “Jogos Vorazes”, “1984”) perseguindo sempre uma cinematografia dinâmica e tensa, consciente de sua eloquente ambientação, da distribuição de pistas semânticas discretas e do seu próprio jogo de progressão narrativa. Centenas de pessoas pobres e endividadas são estimuladas “misteriosamente” a participarem de uma competição inspirada em brincadeiras infantis, cuja premiação final garante um premio milionário em dinheiro. Confinados em uma instalação situada numa ilha secreta e isolada, os jogadores são incentivados a competirem entre si ao longo de seis etapas, tendo em vista que o evento admite apenas um vencedor. Ao longo do “game” verdades escabrosas vem à tona, como a execução sumária dos perdedores, tráfico de órgãos, a possibilidade de assassinarem uns aos outros e até mesmo a desistência, se consentida democraticamente pela maioria. Sem muitas opções e perspectivas de vida fora da competição mortal, Seong Gi-Hun (Lee Jung-jae), Cho Sang-Ho (Park Hae Soo) e companhia encaram desafios, montam estratégias e enfrentam difíceis dilemas morais em busca da fatídica recompensa milionária. Distribuída ao longo de nove episódios, a narrativa de “Round 6” segue com eficácia a cartilha das atuais fórmulas novelescas e das séries de sucesso, uma vez que Hwang Dong-hyuk preconiza um realismo dramático bastante em voga, dando centralidade ao desenvolvimento de personagens que fogem à caricatura simples, desencadeando situações progressivas que mobilizam escolhas humanas difíceis e revelando um contexto socioeconômico cruel com os pobres, fator que transcende o capitalismo regional sul-coreano, facilitando uma identificação mais universal com a obra. A série articula uma linguagem dinâmica e vibrante, ancorada num design de produção sugestivo e numa cenografia infantil e convidativa, embora sarcástica e perniciosa, explorando com muita sobriedade certos núcleos narrativos centrais, sobretudo o do protagonista Seong Gi-Hun, de seu amigo de infância Cho Sang-Ho e do agente infiltrado Cho Sang Ho (Park Hae Soo). O trabalho do realizador sul-coreano equilibra drama, suspense e tensão na medida certa, sempre deixando para o final dos capítulos os momentos mais emocionantes e catárticos, nada novo em se tratando de tramas seriadas, no entanto, o elemento macabro e mortal contido na ambiguidade do conceito de “brincadeira” presente na maioria dos episódios, talvez configure um dos apelos mais eficazes à curiosidade mórbida do espectador.

Lee Jung-jae interpreta Seong Gi-Hun em Round 6

A violência gráfica direta e explícita, beirando ao “goore” é uma constante no roteiro, evidenciada por diversos tipos de mortes e execuções, tornando a atmosfera dos acontecimentos bastante lúgubre e carregada, contrastando com os ambientes lúdicos e coloridos muito bem explorados na fotografia e escancarando a possível fragilidade de alianças e esquemas solidários entre os jogadores. Muito embora esses conchavos coletivos sejam necessários e até uma exigência em algumas brincadeiras, a existência de apenas um ganhador desmotiva o interesse genuíno em valores menos individualistas e egoístas. Na contramão dessa tendência, o personagem de Lee Jung-jae, do paquistanês Ali (Anupam Tripathi) e até mesmo da pseudo vilã norte-coreana Kang Sae-byeok (Jung Ho-yeon) não se vergam à auto proteção a qualquer custo (salvo raras exceções), invertendo a tendência perversa de uma situação limítrofe ao exercerem a bondade, a solidariedade, a honestidade, a compaixão, a união e a empatia, valores que vão se tornando cada vez mais sólidos para o “herói” da série, estigmatizado pela ruína financeira, o vício em apostas, a desonestidade com a própria mãe e o descrédito pessoal com a filha. Os porquês de um sujeito a princípio, indigesto, desonrado, canalha e malandro se justificam ao público na medida em que se escancara o drama social pregresso do desemprego, resultado de uma demissão arbitrária e injusta após longos anos de trabalho numa corporação fabril. Por outro lado, o estudo de personagem também mergulha no espectro tenebroso das escolhas individualistas e oportunistas, especialmente no que diz respeito à dissimulação estratégica, à frieza emocional e cerebral do antagonista Cho Sang-Ho, cujo auto aniquilamento, ao final do último episódio, parece longe de redimi-lo. No mais, o arco do detetive infiltrado em sua busca pelo paradeiro do irmão, embora descarregue uma porção de clichês mirabolantes e soluções fáceis, confere peso importante ao enredo quando se conecta ao universo macabro e sombrio por trás dos jogos mortais, explorando certos elementos instigantes dos bastidores como a rotina disciplinada dos mercenários de macacões vermelhos, suas personalidades frias e esvaziadas, suas atividades clandestinas e o estarrecedor plot dos Vips, misto de anedota da deep weeb e denúncia ao comportamento sádico e desumano da “meia dúzia” de figurões ricos do sistema, cujo entretenimento nefasto e o lucro se fazem à custa da miséria e do sacrifício da massa pobre e desesperada. O senso estratégico e calculado da trama aliado à sua profusão dramática e ao excelente trabalho de montagem reserva para o desfecho a “cereja do bolo” e sua mais perplexa surpresa, provocando o espectador, aguçando o exercício de rememoração e estimulando à caça aos easter eggs. A série de Dong-hyuk acaba encerrando uma mensagem propositiva e humanista em sua superfície, premiando a jornada edificante de Gi-Hun, mas ressaltando que nem tudo é sobre recompensa e dinheiro. A primeira temporada de “Round 6” já é um trunfo mundial da Netflix atestado pela perspicácia de sua leitura dramática do mundo, seja através da alusão a aspectos cruéis do capitalismo contemporâneo ou da amálgama de referências culturais sensacionalistas advindas do contexto social desse próprio sistema (filmes, reality shows e programas de auditório).


Por: Ábine Fernando Silva

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