Criação: Mark Frost e David Lynch
Elenco Principal: Kyle MacLachlan, Sheryl Lee, Michael Ontkean, Frank Silva, Harry Goaz, Kimmy Robertson, Michael Horse, Ray Wise, Sherilyn Fenn, Lara Flynn Boyle, James Marshall, Wendy Robie, Grace Zabriskie, Catherine E. Coulson, David Lynch.
Disponível: PrimeVideo (assinatura premium).
Um dos maiores fenômenos dramatúrgicos da TV estadunidense dos anos 90, “Twin Peaks” revolucionou o conceito e a estética da programação seriada, conseguindo alinhar com bastante instinto criativo o gosto popularesco pelos clichês narrativos do noir e do melodrama e a peculiar estilística sensorial e surrealista do cinema de Lynch, convertendo-se numa espécie de referência vanguardista extremamente influente para o audiovisual das décadas seguintes. Talvez o grande trunfo da produção de Mark Frost e David Lynch, exibida originalmente pela rede ABC, tenha sido o de provar de uma vez por todas, que trabalhos com um viés mais autoral e experimental poderiam sim encontrar vazão fora da cena cinematográfica independente, transformando certos paradigmas, convenções e tabus associados até então ao consumo doméstico dos seriados de televisão. Em relação à primeira etapa do projeto no qual a presente análise se debruça (pretendo comentar acerca da terceira e última temporada de 2017 em outra oportunidade), “Twin Peaks” (nome atribuído à fictícia e “pacata” cidadezinha situada na fronteira entre Estados Unidos e Canadá) soma oito episódios em sua primeira parte (1990) e vinte e dois episódios na segunda (1990-91), narrando à investigação e os impactos sociais e psicológicos do brutal assassinato da adolescente Laura Palmer (Sheryl Lee), concentrando-se em abordar as peripécias do Xerife Harry S. Truman (Michael Ontkean), sua equipe e do agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) em busca de respostas. Traça-se todo um panorama comunitário bastante revelador, onde uma série de personagens e subtramas se desenvolvem guardando mais ou menos relações com o hediondo crime. Desta forma, segredos sórdidos relacionados a certas figuras importantes do local vão sendo gradativamente descobertos e expostos através dos métodos investigativos nada convencionais do excêntrico detetive Cooper, assim como a possibilidade de um espectro maligno estar envolvido na morte de Laura e agindo sobre Twin Peaks. Tendo em vista às exigências estilísticas de uma atração televisiva, Frost e Lynch constroem o “esqueleto” de sua trama policialesca atribuindo-lhe um aspecto íntimo de “telenovela”, convidando em sua superfície o espectador a embarcar nos habituais meandros especulativos do mistério acerca do assassinato de uma jovem colegial, mas também, aprofundando o universo narrativo desse evento ao lançar mão de uma proposta dramatúrgica mais diversificada e original que subvertem certas nuances do melodrama, da comédia e do terror e cujos personagens, ou pelo menos uma boa parte deles, são investidos de um carisma e um protagonismo singular, haja vista uma série de desconstruções caricaturais e inusitadas que se operam, promovendo e exaltando o que comumente se estigmatiza como “anormal”, esquisito e bizarro. Aliás, esse aspecto da série ajuda a evidenciar o fascínio do diretor americano pelo irracional e consequentemente pelo sobrenatural, uma vez que a importância humana e até mesmo o protagonismo atribuído a esses sujeitos meio “alheios” e deslocados dos padrões sociais (inclusive estéticos) reforçam seus atributos místicos, assim como seu elo de conexão com o sagrado.
Sendo assim, figuras do enredo ligadas ao mundo físico tais como o holístico detetive Cooper, o atrapalhado e ingênuo policial Andy (Harry Goaz), o indígena Hawk (Michael Horse), a mulher do tronco (Catherine E. Coulson), a médium Sarah Palmer (Grace Zabriskie) entre outros, parecem ratificar esse deslumbre da narrativa por uma espiritualidade pungente e aguçada contidas no anticonvencional e personificada também, por sua vez, nas entidades do plano onírico e metafísico como o Gigante (Carel Struycken), o Anão (Michael J. Anderson) e a própria entidade maligna Bob (Frank Silva). A série cria o ensejo para que a realidade e a vida sejam tomadas como uma dimensão diretamente influenciada pelo plano espiritual (a sala vermelha da Black Lodge) permitindo que a produção, a partir do conceito lynchiano (imagens e símbolos estabelecendo estímulos sensoriais e circuitos semânticos independentes), provoque o espectador com uma série de sensações inquietantes e desestabilizadoras, sobretudo, através da forma meio misteriosa e simbólica de conceber e abordar os personagens, sua relação com o palco dos acontecimentos e os próprios eventos em si. A narrativa progride “revelando” certa faceta obscura e hipócrita de uma cidadezinha aparentemente pacata e hospitaleira, onde alguns de seus mais tradicionais e respeitáveis membros estão metidos em atividades sórdidas e criminosas, em traições e mentiras, atraindo, desta forma, a ação de uma espécie de força demoníaca. Por outro lado, o simpático e voluntarioso agente do FBI vivido por Kyle MacLachlan ao despontar a frente das investigações do assassinato “abraçando” fraternamente Twin Peaks e seus singelos moradores, passa a penetrar cada vez mais os mistérios que indubitavelmente envolvem o caso, dando vasão aos seus estranhos sinais e, particularmente, a sua própria intuição espiritual, descobrindo projetos secretos do governo envolvendo o conhecimento da excepcionalidade ultra dimensional do lugar (portal para seres e realidades paralelas) e simbolizando uma força pura e humana capaz de fazer frente à maldição que se abate sobre toda comunidade. Percebe-se de maneira geral que a obra para além da construção experimental e atmosférica do suspense e do terror, responsáveis por suscitar no espectador um misto de apreensão, angústia e pavor, também equilibra com certo sarcasmo e cinismo elementos mais novelescos do melodrama piegas quando aborda, por exemplo, os exageros sentimentais do jovem casal James (James Marshall) e Donna (Lara Flynn Boyle) ou então quando se envereda pelo humor histriônico bastante espontâneo e natural de figuras como o desastrado policial Andy, a fanha secretária do xerife Lucy (Kimmy Robertson) e a passional e desequilibrada Nadine (Wendy Robie) que ao se acidentar adquire repentinamente super poderes. “Twin Peaks” se aproveita, portanto, de inúmeras convenções narrativas do cinema de gênero para subvertê-las através de sua estilística de fluxo, onde em boa medida, a mise-en-scene acaba servindo mais aos interesses da simbologia surrealista e ao estímulo de sensações diversas, do que ao propósito de progressão rumo à resolução de sua premissa narrativa central. Dito isto, não se pode em hipótese alguma sustentar que a obra de Frost e Lynch se perde em digressões ou excessos experimentais, ao contrário, toda essa gama de imagens provocativas e estímulos sensoriais tornam a própria história fascinante e uma boa parte de seus personagens, extremamente marcantes, avolumando-se aquelas experiências de fruição diante de sentimentos e emoções humanas tão extremas e contraditórias, muitas vezes, regida pelo traçado influente do desenho sonoro melancólico da canção tema de Angelo Badalamenti. Fomenta-se um turbilhão de sensações instigantes em tela ao longo dos trinta episódios: o medo e a coragem, o asco e a afeição, a verdade e a falsidade, a ingenuidade e a malícia, a pureza e a depravação, a bondade e a maldade, o amor e o ódio, etc. O sabor de anticlímax e o desfecho um tanto sombrio e negativo da série ao final da segunda temporada parecem acenar para o realismo da impotência humana e da vida diante do banal triunfo do mal, rejeitando o clichê do "final feliz" e do heroísmo previsível, soando como uma provocação meio sarcástica de um artista primoroso em manipular imagens subjetivas carregadas de simbolismo e sugestão.
Por: Ábine Fernando Silva
Ficou ótimo a descrição do seriado. De fato, é interessante a mensagem que é passado. Gostei.