Direção: Todd Field
Roteiro: Todd Field
Elenco principal: Cate Blanchett, Nina Hoss, Sophie Kauer, Noémie Merlant, Mark Strong, Julian Glover.
Em “Tár” (2022) Todd Field lança mão, a principio, de uma espécie de relato “biográfico” indulgente e cerimonioso centrado na carreira magnificente da maestra Lydia Tár (Cate Blanchett) para mais adiante, de forma um tanto comedida, austera e sinuosa, recorrer a um drama pessoal e “trágico” que põe em foco o “império” soberbo e narcisista dessa “celebridade” da música clássica cujos desejos inconsequentes, alimentados talvez pela posição de poder quase intocável e pelo status artístico cobiçado, resultam num desfacelamento não só de sua vida pessoal, como também da própria reputação. A trama é conduzida por uma intencionalidade exagerada em perscrutar a importância acadêmica e artística de Lydia, inclusive destacando seu protagonismo enquanto “mulher lésbica” num meio social tradicionalmente dominado por homens, contudo, a narrativa jamais perde de vista certas nuances dos eventos e da própria personalidade da regente denunciando uma predisposição viciosa que reproduz uma lógica machista, possibilitando uma conjectura trágica a posteriori. A presunção geniosa e controladora, a presença impositiva na ação, a pulsão sexual latente e até a altivez irônica da maestra, bastante evidenciados pela expressividade cerebral e compassiva da performance de Blanchett e pelo estilo realista um tanto convencional e impessoal, mas intimista de Field, sugerem essa leitura “masculinizada” e até “patriarcal” no estudo de personagem, contradizendo e “ofuscando” por um lado, toda importância simbólica da posição social e cultural alcançadas pela personagem e por outro lado, revelando certo desprezo mesquinho, quase autista em relação ao que não julga aparentemente relevante para si (de opiniões a pessoas) e anacrônico no que se refere aos novos paradigmas do mundo moderno. Aliás, o que o roteiro contido e pouco expositivo apresenta como uma de suas discussões mais francamente explícitas diz respeito a esse modo de ser “esnobe” e “irônico” naturalizados por Lydia, desconsiderando recentes demandas culturais e comportamentais da realidade contemporânea, ainda que expostas por uma ótica limitante, meio superficial e pseudo engajada. É interessante como a narrativa consegue emprestar uma faceta ambígua e contraditória à personagem vivida por Blanchett sem simplificações didáticas e exposições preguiçosas, permitindo que suas elipses bem orquestradas na montagem forneçam no momento oportuno, o necessário a compreensão do espectador. Além do mais, a direção num excelente exercício de metalinguagem, ainda consegue proporcionar, por meio da encenação e dos diálogos, uma série de reflexões acerca do “lugar de fala” do artista, da responsabilidade de manter um legado, da relevância do seu fazer e do objeto artístico, assim como do impacto social da obra. Desvencilhar todos os pecados pessoais do gênio criador daquilo que é criado, buscando uma relação fruída com essa mesma criação, descontaminada das atuais ondas de cancelamentos operados por milícias de “haters” supõe um obstáculo árduo num mundo cada vez mais hipercontrolado e super-expositivo das informações. Lydia Tár parecia menosprezar tudo isso no cume de seu próprio Olimpo, mergulhando em seu ofício de forma cega e devota, simplesmente desprezando um escândalo sexual trágico envolvendo seu nome, no mesmo compasso ansioso de uma espécie de “crise da meia idade” ao vislumbrar uma nova aventura extraconjugal com a jovem violoncelista russa Olga (Sophie Kauer). Aqui o talento e o mérito artístico se confundem com a pertinência do capital social e com os interesses e desejos pessoais da mulher detentora do lugar de privilégio na deslumbrante filarmónica de Berlim. Para Tár, a estabilidade, o prestígio profissional e a família foram, no fim das contas, o preço pago sem tantos alardes por uma vaidade egocêntrica desmedida e para Todd Field e seu estilo austero, o fim da jornada de sua anti-heroína, ironizada inclusive pelo anagrama contido em seu próprio nome “TÁR/RAT” parece evocar mais o desprezo e o limbo do que um suposto “recomeço”.
Nota: (10 / 9)
Por: Ábine Fernando Silva
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